quarta-feira, 26 de março de 2008

Seja eu de quem for

(Blossoming, por Brian Fahlstrom)

Serei eu a chama que arde em ti ou por acaso já se apagou o fogo que deixei de ver nos teus olhos.

Serás tu a minha alma gémea ou incendiou-se o rastilho de paixão que me cega.

Louca esta visão que me surge no horizonte: o sol que se põe, a noite que desliza por entre nós, o cheiro do mar, a flor que nos faz falta, o perfume que nos une.

Ando à procura de um ideal para que amanhã seja um ideólogo, um fantasma ou um psicólogo, alguém por quem possam chamar. Por isso quero ser alguém, quero ser de alguém e, sem saber bem porquê, entrego-me sem ver a quem, pois é a forma mais fácil de fugir.

Preencho a espaços aquilo que me falta entender. Em cada passo em falso que dou descubro algo mais e encho a minha já vasta colecção de frustrações. Entrego-me a quem quer que seja mas sem nunca me deixar possuir.

Aperta-me algo por dentro, foi mais um pedaço que morreu. Volta de novo o vazio que me pinta por fora, levanta-se o muro que chega a ser ridículo. Cubro-me de fantasias, crio mitos e personagens, distribuo papeis por aqueles com que me deparo, elaboro maquiavélicos obstáculos e sento-me à espera.

Espero que peguem em mim, que mandem o muro abaixo, que me prendam. Espero em vão. Troco as voltas à vida, construo um labirinto à minha volta e perco-me. Devolvo a paz ao mundo nas horas em que me deixo dormir para, mais tarde, voltar ainda mais insaciável.

Fecho os olhos, continuo a fugir, tropeço em mais alguém que ficou por amar, mais um erro de percurso. Mas continuo nesta minha entrega, a quem quer que seja.

Continuo a fingir para a vida seja eu de quem for. Continuo a viver do engano e mantenho-me fiel a esta espécie de infidelidade da qual ninguém está a salvo. Este é o meu furacão, o meu tsunami que arrasta almas, corações e deixa um rasto terrível de desilusões.

Carlos Miguel Leite

quarta-feira, 19 de março de 2008

Deste modo ou daquele modo

Deste modo ou daquele modo,
Conforme calha ou não calha,
Podendo às vezes dizer o que penso,
E outras vezes dizendo-o mal e com misturas,
Vou escrevendo os meus versos sem querer,
Como se escrever
não fosse uma coisa feita de gestos,
Como se escrever
fosse uma coisa que me acontecesse
Como dar-me o sol de fora.

Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras à idéia
E não precisar dum corredor
Do pensamento para as palavras.

Nem sempre
consigo sentir o que sei que devo sentir.
O meu pensamento
só muito devagar atravessa o rio a nado
Porque lhe pesa o fato
que os homens o fizeram usar.

Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me
do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta
com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu,
Um animal humano que a Natureza produziu.

E assim escrevo, querendo sentir a Natureza,
nem sequer como um homem,
Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.
E assim escrevo, ora bem, ora mal,
Ora acertando com o que quero dizer,
ora errando,
Caindo aqui, levantando acolá,
Mas indo sempre no meu caminho
como um cego teimoso.

Ainda assim, sou alguém.
Sou o descobridor da Natureza.
Sou o argonauta das sensações verdadeiras.
Trago ao Universo um novo Universo
Porque trago ao Universo ele próprio.

Isto sinto e isto escrevo
Perfeitamente sabedor e sem que não veja
Que são cinco horas do amanhecer
E que o sol, que ainda não mostrou a cabeça
Por cima do muro do horizonte,
Ainda assim já se lhe vêem as pontas dos dedos
Agarrando o cimo do muro
Do horizonte cheio de montes baixos.

Alberto Caeiro

terça-feira, 18 de março de 2008

Se as minhas mãos pudessem desfolhar

(Full moon, por Ron Croci)

Eu pronuncio teu nome
nas noites escuras,
quando vêm os astros beber na lua
e dormem
nas ramagens das frondes ocultas.
E eu me sinto oco de paixão
e de música.
Louco relógio
que canta mortas horas antigas.
Eu pronuncio teu nome,
nesta noite escura,
e teu nome me soa
mais distante que nunca.
Mais distante que todas as estrelas
e mais dolente que a mansa chuva.
Amar-te-ei
como então alguma vez?
Que culpa tem meu coração?
Se a névoa se esfuma,
que outra paixão me espera?
Será tranqüila e pura?
Se minhas mãos
pudessem desfolhar a lua!

Garcia Lorca

quinta-feira, 13 de março de 2008

Além do amor

Maravilhoso seria possuí-la,
mostrar-me todo e real a ela,
abrir à volúpia uma janela,...
o portão, a porta, a casa inteira,
até que se fizesse verdadeira,
alojando-se confortável ao coração.

E por ser assim profunda, então,
toda palavra se tornando obsoleta,
a felicidade fazendo-se completa;
mergulhados os corpos no silêncio,
faríamos amor, como hoje penso:
a paixão elevada, além da poesia

A prática conduzir-nos-ia ao cansaço
e este, ao mais perfeito deleite:
vê-la dormir, tal anjo ao abandono;
instante em que,... atrevido,
eu pararia o universo,
só pra evitar que alguma luz distante
pudesse, talvez, incomodar seu sono.

André L. Soares

quarta-feira, 12 de março de 2008

Quem morre?

Morre lentamente
Quem não viaja,
Quem não lê,
Quem não ouve música,
Quem não encontra graça em si mesmo

Morre lentamente
Quem destrói seu amor próprio,
Quem não se deixa ajudar.

Morre lentamente
Quem se transforma em escravo do hábito
Repetindo todos os dias os mesmos trajeto,
Quem não muda de marca,
Não se arrisca a vestir uma nova cor ou
Não conversa com quem não conhece.

Morre lentamente
Quem evita uma paixão e seu redemoinho de emoções, Justamente as que resgatam o brilho dos
Olhos e os corações aos tropeços.

Morre lentamente
Quem não vira a mesa quando está infeliz
Com o seu trabalho, ou amor,
Quem não arrisca o certo pelo incerto
Para ir atrás de um sonho,
Quem não se permite, pelo menos uma vez na vida, Fugir dos conselhos sensatos...

Viva hoje !
Arrisque hoje !
Faça hoje !
Não se deixe morrer lentamente !

NÃO SE ESQUEÇA DE SER FELIZ

Martha Medeiros

sexta-feira, 7 de março de 2008

Um bonde chamado seu beijo

Evening mood, por William Bouguereau
(Evening mood, por Bouguereau)

Quem encobrirá meu sono?
Beijará quem minhas costas no cotidiano?
Quem, no meio do frio, me cobrirá com lindas orelhas
e me dirá palavras indecentes nos ouvidos?
Quem, atrevido, me acordará com o ponteiro em riste
como um pássaro que não quer tudo
apenas o céu, a gaiola, o alpiste?
Quem que, quando eu dormisse, por mim zelasse
e eu, quando acordasse, lhe fizesse iogurtes brejeiros
massagens nos pés, cumplicidades de enlace?
Quem me agarrará por trás quando eu sair cheirosa do banho
e terá orgulho de eu ser guerreira e perfumada ao mesmo tempo?
Quem em bom senso dirá que muito me assanho
quem orientará a guerrilha diária a que me proponho
quem será inteligente e gostoso a meu lado como está no meu sonho?
Quem, a quem me disponho a cozinhar e fazer versos
quem racional e perverso cochichará nos tímpanos da minha alma
a doce ordem, a venal palavra: Calma?
Quem com sua alma me mostrará um mar vertical?
Quem, meu igual, me apontará andores reais, sem excesso de glacê no bolo
Com determinação de touro e a nobreza de poder ser banal?
Quem, coisa e tal, me beijará a boca e me enfiará as mãos
por debaixo da barra do segredo do vestido
e um dia passeará comigo no segredo contido na Barra do Jucu?
Quem, senão tu que eu elejo, eu planejo, pode habitar o lugar
a suíte que há tanto tenho reservado?
Quem, encomendado, pode me manter na confiança dos edredons
enquanto não chega?
Quem, com certeza, me visitará num outubourbon no gume da lira
de eu ser égua, cadela, mulher e sua?
Quem sobre mim sua, pinga, chove?
Quem que com lucidez resolve o abismo simples de prever o risco de sonhar
pra nele mesmo cair, rir
e se embolar?
Quem me dará a idéia de conceber a saudade no sentido tático
quem, não estático, de longe me fará cometer poemas de meia-noite?
Quem, sem favor, me estende o braço com rosas na mão
com explicação pro meu calor?
Quem, senão meu doido bondinho
meus olhos acesinhos, meu comedor...
Meu triz, meu risco
meu cristo redentor?

Elisa Lucinda

Um sol diferente

Que apesar de todas as dificuldades,
apesar de algumas tristezas que insistem,
mesmo com essa montanha erguida,
o sol possa ser seu presente mais doce.

Desejo ao seu coração o querer que ele quer.
Que dentre as palavras que ele sussurra em seu peito
sejam ouvidas aquelas que cantam a liberdade.

Que você esteja atento para o sopro da sua vontade e
jamais desista dos seus passos em direção à verdade.
Desejo que a sua percepção acorde mais plena
no calor de um sol novo e renovador.
Que ele encoraje as atitudes que estão querendo respirar.
Aquelas que sempre são substituídas.
Aquelas que não se arrojam por ter os pesos
de conceitos por demais antigos.

Desejo que você aceite seu tempo, seja ele qual for.
Que sinta serenidade na espera necessária para que a
semente plantada brote no tempo certo.
Desejo que sua flor seja inteira,
e mesmo que inicialmente pequena e frágil,
ela lhe traga as luzes de uma estrada azul.
Que a sua sabedoria esteja desperta,
aguardando com tranqüilidade o desabrochar da sua flor.

Desejo a você um sol diferente.
Espalhando seu sorriso pela densidade das nuvens,
simplificando o aspecto complicado de alguns momentos e
mostrando-lhe a fonte essencial para sua sede.

Desejo que, a cada instante, você desnude mais seu coração e deixe que nele vibre em tom maior o amor.

Alberto Gomes Ferreira

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Contribuição da Carlinha do NaCarla. Valeu Carlinha!

sábado, 1 de março de 2008

Despedida

Existem duas dores de amor:
A primeira é quando a relação termina e a gente,
seguindo amando, tem que se acostumar com a ausência do outro,
com a sensação de perda, de rejeição e com a falta de perspectiva,
já que ainda estamos tão embrulhados na dor
que não conseguimos ver luz no fim do túnel.

A segunda dor é quando começamos a vislumbrar a luz no fim do túnel.

A mais dilacerante é a dor física da falta de beijos e abraços,
a dor de virar desimportante para o ser amado.
Mas, quando esta dor passa, começamos um outro ritual de despedida:
a dor de abandonar o amor que sentíamos.
A dor de esvaziar o coração, de remover a saudade, de ficar livre,
sem sentimento especial por aquela pessoa. Dói também…

Na verdade, ficamos apegados ao amor tanto quanto à pessoa que o gerou.
Muitas pessoas reclamam por não conseguir se desprender de alguém.
É que, sem se darem conta, não querem se desprender.
Aquele amor, mesmo não retribuído, tornou-se um souvenir,
lembrança de uma época bonita que foi vivida…
Passou a ser um bem de valor inestimável, é uma sensação à qual
a gente se apega. Faz parte de nós.
Queremos, logicamente, voltar a ser alegres e disponíveis,
mas para isso é preciso abrir mão de algo que nos foi caro por muito tempo,
que de certa maneira entranhou-se na gente,
e que só com muito esforço é possível alforriar.

É uma dor mais amena, quase imperceptível.
Talvez, por isso, costuma durar mais do que a ‘dor-de-cotovelo’
propriamente dita. É uma dor que nos confunde.
Parece ser aquela mesma dor primeira, mas já é outra. A pessoa que nos
deixou já não nos interessa mais, mas interessa o amor que sentíamos por
ela, aquele amor que nos justificava como seres humanos,
que nos colocava dentro das estatísticas: “Eu amo, logo existo”.

Despedir-se de um amor é despedir-se de si mesmo.
É o arremate de uma história que terminou,
externamente, sem nossa concordância,
mas que precisa também sair de dentro da gente…
E só então a gente poderá amar, de novo.