quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.

Fernando Pessoa

Penetração do poema das sete faces

Ele entrou em mim sem cerimônias
Meu amigo seu poema em mim se estabeleceu
Na primeira fala eu já falava como se fosse meu
O poema só existe quando pode ser do outro
Quando cabe na vida do outro
Sem serventia não há poesia não há poeta não há nada
Há apenas frases e desabafos pessoais
Me ouça, Carlos, choro toda vez que minha boca diz
A letra que eu sei que você escreveu com lágrimas
Te amo porque nunca nos vimos
E me impressiono com o estupendo conhecimento
Que temos um do outro
Carlos, me escuta
Você que dizem ter morrido
Me ressuscitou ontem à tarde
A mim a quem chamam viva
Meu coração volta a ser uma remington disposta
Aprendi outra vez com você
A ouvir o barulho das montanhas
A perceber o silêncio dos carros
Ontem decorei um poema seu
Em cinco minutos
Agora dorme, Carlos.

Elisa Lucinda

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Sala de espera

Sala de espera de dentista. Homem dos seus quarenta anos. Mulher jovem e bonita. Ela folheia uma Cruzeiro de 1950. Ele finge que lê uma Vida dentária.

Ele pensa: que mulherão. Que pernas. Coisa rara, ver pernas hoje em dia. Anda todo mundo de jeans. Voltamos à época em que o máximo era espiar um tornozelo. Sempre fui um homem de pernas. Pernas com meias. Meias de náilon. Como eu sou antigo. Bom era o barulhinho. Suish-suish. Elas cruzavam as pernas e fazia suish-suish. Eu era doido por um suish-suish.

Ela pensa: cara engraçado. Lendo a revista de cabeça para baixo.

Ele: te arranco a roupa e te beijo toda. Começando pelo pé. Que cena. A enfermeira abre a porta e nos encontra nus sobre o carpete, eu beijando o pé. O que é isso?! Não é o que a senhora está pensando. É que entrou um cisco no olho desta moça e eu estou tentando tirar. Mas o olho é na outra ponta! Eu ia chegar lá. Eu ia chegar lá.

Ela: ele está olhando as minhas pernas por baixo da revista. Vou descruzar as pernas e cruzar de novo. Só para ele aprender.

Ele: ela descruzou e cruzou de novo! Ai meu Deus. Foi pra me matar. Ela sabe que eu estou olhando. Também, a revista está de cabeça pra baixo. E agora? Vou ter que dizer alguma coisa.

Ela: ele até que é simpático, coitado. Grisalho. Distinto. Vai dizer alguma coisa...

Ele: o que é que eu digo? Tenho que fazer alguma referência à revista virada. Não posso deixar que ela me considere um bobo. Não sou um adolescente. Finjo que examino a revista mais de perto, depois digo Sabe que só agora me dei conta de que estava lendo essa revista de cabeça para baixo? Pensei que fosse em russo. Aí ela ri e eu digo E essa sua Cruzeiro? Tão antiga que deve estar impressa em pergaminho, é ou não é? Deve ter desenhos infantis do Millôr. Aí riremos os dois, civilizadamente. Falaremos nas eleições e na vida em geral. Afinal, somos duas pessoas normais, reunidas por circunstância numa sala de espera. Conversaremos cordialmente. Aí eu dou um pulo e arranco toda a roupa dela.

Ela: ele vai falar ou não? É do tipo tímido. Vai dizer que tempo, né? A senhora não acha? É do tipo que pergunta Senhora ou senhorita? Até que seria diferente. Hoje em dia a maioria já entra rachando... Vamos variar de posição, boneca? Mas espere, nós ainda nem nos conhecemos, não fizemos amor em posição nenhuma! É que eu odeio as preliminares. Esse é diferente. Distinto. Respeitador.

Ele: digo o quê? Tem um assunto óbvio. Estamos os dois esperando a vez num dentista. Já temos alguma coisa em comum. Primeira consulta? Não, não. Sou cliente antiga. Estou no meio do tratamento. Canal? É. E o senhor? Fazendo meu check-up anual. Acho que estou com uma cárie aqui atrás. Quer ver? Com esta luz não sei se... Vamos para o meu apartamento. Lá a luz é melhor. Ou então ela diz pobrezinho, como você deve estar sofrendo. Vem aqui e encosta a cabecinha no meu ombro, vem. Eu dou um beijinho e passa. Olhe, acho que um beijo por fora não adianta. Está doendo muito. Quem sabe com a sua língua...

Ela: ele desistiu de falar. Gosto de homens tímidos. Maduros e tímidos. Ele está se abanando com a revista. Vai falar do tempo. Calor, né? Aí eu digo É verão. E ele: É exatamente isso! Como você é perspicaz. Estou com vontade de sair daqui e tomar um chope. Nem me fale em chope. Você não gosta de chope? Não, é que qualquer coisa gelada me dói a obturação. Ah, então você está aqui para consultar o dentista, como eu. Que coincidência espantosa! Os dois estamos com calor e concordamos que a causa é o verão. Os dois temos o mesmo dentista. É o destino. Você é a mulher que eu esperava todos estes anos. Posso pedir sua mão em noivado?

Ele: ela está chegando ao fim da revista. Já passou o crime do Sacopã, as fotos de discos voadores... Acabou! Olhou para mim. Tem que ser agora. Digo: Você está aqui para limpeza de pernas? Digo, de dentes? Ou para algo mais profundo como uma paixão arrebatadora por pobre de mim?

Ela: e se eu disser alguma coisa? Estou precisando de alguém estável na minha vida. Alguém grisalho. Esta pode ser a minha grande oportunidade. Se ele disser qualquer coisa, eu dou o bote. Calor, né? Eu também te amo!

Ele: melhor não dizer nada. Um mulherão desses. Quem sou eu? É muita perna pra mim. Se fosse uma só, mas duas! Esquece, rapaz. Pensa na tua cárie que é melhor. Claro que não faz mal dizer qualquer coisinha. Você vem sempre aqui? Gosto do Roberto Carlos? O que serão os buracos negros? Meu Deus, ela vai falar!

- O senhor podia...
- Não! Quero dizer, sim?
- Me alcançar outra revista?
- Ahn... Cigarra ou Revista dda Semana?
- Cigarra.
- Aqui está.
- Obrigada.

Aí a enfermeira abre a porta e diz:
- O próximo.

E eles nunca mais se vêem
Luis Fernando Veríssimo

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

O meu impossível

Minh'alma ardente é uma fogueira acesa,
É um brasido enorme a crepitar!
Ânsia de procurar sem encontrar
A chama onde queimar uma incerteza!

Tudo é vago e incompleto! E o que mais pesa
É nada ser perfeito. É deslumbrar
A noite tormentosa até cegar,
E tudo ser em vão! Deus, que tristeza!...

Aos meus irmãos na dor já disse tudo
E não me compreenderam!... Vão e mudo
Foi tudo o que entendi e o que pressinto...

Mas se eu pudesse a mágoa que em mim chora
Contar, não a chorava como agora,
Irmãos, não a sentia como a sinto!...
Florbela Espanca

terça-feira, 20 de novembro de 2007

O poeta pede ao seu amor que lhe escreva

(Blue nude, por Picasso)

Amor de minhas entranhas, morte viva,
em vão espero tua palavra escrita
e penso, com a flor que se murcha,
que se vivo sem mim quero perder-te.

O ar é imortal. A pedra inerte
nem conhece a sombra nem a evita.
Coração interior não necessita
o mel gelado que a lua verte.

Porém eu te sofri. Rasguei-me as veias,
tigre e pomba, sobre tua cintura
em duelo de kordiscos e açucenas.

Enche, pois, de palavras minha loucura
ou deixa-me viver em minha serena
noite da alma para sempre escura.

Garcia Lorca

---------------
A tradução acima foi feita por William Agel de Melo

Powered by Qumana

O amor é outra coisa

O amor não é algo que te faz sair do chão
e te transporta para lugares que nunca viste.
O nome disso é avião.
O amor é outra coisa.

O amor não é uma coisa que escondes dentro de ti e guardas na intimidade.
Isso chama-se vibrador tailandês de alta qualidade.
O amor é outra coisa.

O amor não é uma coisa que te faz perder a fala e a respiração.
O nome disso é bronquite asmática e ataca o pulmão.
O amor é outra coisa.

O amor não é uma coisa que chega de repente e te transforma em refém.
Isso chama-se talibã, entre Israel e Belém.
O amor é outra coisa.

O amor não é uma coisa que voa alto no céu e deixa a sua marca por onde passa.
Isso chama-se pombo com desinteria e se te apanha é uma desgraça.
O amor é outra coisa.

O amor não é uma coisa que tu podes prender ou abandonar quando bem entenderes.
Isso chama-se cão, e se o fizeres não tem perdão.
O amor é outra coisa.

O amor não é uma coisa que te iluminou,
pôs-te ver estrelas e deixou em ti a sua marca, fez-te feliz.
Isso chama-se cirurgião e o que deixa é cicatriz.
O amor é outra coisa.

O amor não é coisa que se perca,
ou que se faça questão.
O nome disso é prolocolo ou declaração.
O amor é outra coisa.

O amor não é uma coisa que desapareceu e que,
quando encontras, muda tudo o que vês.
Isso é o controle-remoto da TV.
O amor é outra coisa.

O amor não é uma coisa que talvez muita gente desconheça,
e que vem rápida e impiedosa te fazendo perder a cabeça.
Isso se chama guilhotina.
O amor é outra coisa.

Autor Desconhecido

Powered by Qumana

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Correções

Esta semana descobri que dois textos desse blog estavam com a autoria errada. São (ou melhor, eram) eles: Navegue que é de autoria de Silvana Duboc e antes constava como de Fernando Pessoa e Quase de autoria de Sarah Westphal que estava atribuído a Luis Fernando Veríssimo.
Existem muitos textos bons circulando na Internet com autoria atribuída a outras pessoas, por isso procuro sempre verificar a procedência. Contudo há casos, como esses acima, em que o texto é tão difundido com o erro que demora até se descobrir a verdade.
Com a sensação de dever cumprido, despeço-me, por ora!


Powered by Qumana


Ao coração que sofre

Ao coração que sofre, separado
Do teu, no exílio em que a chorar me vejo,
Não basta o afeto simples e sagrado
Com que das desventuras me protejo.

Não me basta saber que sou amado,
Nem só desejo o teu amor: desejo
Ter nos braços teu corpo delicado,
Ter na boca a doçura de teu beijo.

E as justas ambições que me consomem
Não me envergonham: pois maior baixeza
Não há que a terra pelo céu trocar;

E mais eleva o coração de um homem
Ser de homem sempre e, na maior pureza,
Ficar na terra e humanamente amar.

Olavo Bilac

Powered by Qumana

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Que é simpatia?

Simpatia - é o sentimento
Que nasce num só momento,
Sincero, no coração;
São dois olhares acesos
Bem juntos, unidos, presos
Numa mágica atração.

Simpatia - são dois galhos
Banhados de bons orvalhos
Nas mangueiras do jardim;
Bem longe às vezes nascidos,
Mas que se juntam crescidos
E que se abraçam por fim.

São duas almas bem gêmeas
Que riem no mesmo riso,
Que choram nos mesmos ais;
São vozes de dois amantes,
Duas liras semelhantes,
Ou dois poemas iguais.

Simpatia - meu anjinho,
É o canto de passarinho,
É o doce aroma da flor;
São nuvens dum céu d'agosto
É o que m'inspira teu rosto...
- Simpatia - é quase amor!


Casemiro de Abreu
Powered by Qumana

Cien sonetos de amor (nº 44)

Sabrás que no te amo y que te amo
puesto que de dos modos es la vida,
la palabra es un ala del silencio,
el fuego tiene una mitad de frío.

Yo te amo para comenzar a amarte,
para recomenzar el infinito
y para no dejar de amarte nunca:
por eso no te amo todavía.

Te amo y no te amo como si tuviera
en mis manos las llaves de la dicha
y un incierto destino desdichado.

Mi amor tiene dos vidas para amarte.
Por eso te amo cuando no te amo
y por eso te amo cuando te amo.

Pablo Neruda

Powered by Qumana

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Estamos com fome de amor

Uma vez Renato Russo disse com uma sabedoria ímpar: "Digam o que disserem, o mal do século é a solidão". Pretensiosamente digo que assino embaixo sem dúvida alguma. Parem pra notar, os sinais estão batendo em nossa cara todos os dias. Baladas recheadas de garotas lindas, com roupas cada vez mais micros e transparentes, danças e poses em closes ginecológicos, chegam sozinhas e saem sozinhas. Empresários, advogados, engenheiros que estudaram, trabalharam, alcançaram sucesso profissional e, sozinhos.

Tem mulher contratando homem para dançar com elas em bailes, os novíssimos "personal dance", incrível. E não é só sexo não, se fosse, era resolvido fácil, alguém duvida? Estamos é com carência de passear de mãos dadas, dar e receber carinho sem necessariamente ter que depois mostrar performances dignas de um atleta olímpico, fazer um jantar pra quem você gosta e depois saber que vão "apenas" dormir abraçados, sabe essas coisas simples que perdemos nessa marcha de uma evolução cega. Pode fazer tudo, desde que não interrompa a carreira, a produção.

Tornamos-nos máquinas e agora estamos desesperados por não saber como voltar a "sentir", só isso, algo tão simples que a cada dia fica tão distante de nós.

Quem duvida do que estou dizendo, dá uma olhada no site de relacionamentos ORKUT, o número que comunidades como:
"Quero um amor pra vida toda!", "Eu sou pra casar!" até a desesperançada "Nasci pra ser sozinho!" Unindo milhares ou melhor milhões de solitários em meio a uma multidão de rostos cada vez mais estranhos, plásticos, quase etéreos e inacessíveis.

Vivemos cada vez mais tempo, retardamos o envelhecimento e estamos a cada dia mais belos e mais sozinhos. Sei que estou parecendo o solteirão infeliz, mas pelo contrário, pra chegar a escrever essas bobagens (mais que verdadeiras) é preciso encarar os fantasmas de frente e aceitar essa verdade de cara limpa.
Todo mundo quer ter alguém ao seu lado, mas hoje em dia é feio, démodé, brega.

Alô gente! Felicidade, amor, todas essas emoções nos fazem parecer
ridículos, abobalhados, e daí?

Seja ridículo, não seja frustrado, "pague mico", saia gritando e falando
bobagens, você vai descobrir mais cedo ou mais tarde que o tempo pra ser feliz é curto, e cada instante que vai embora não volta mais (estou muito brega!), aquela pessoa que passou hoje por você na rua, talvez nunca mais volte a vê-la, quem sabe ali estivesse a oportunidade de um sorriso a dois.

Quem disse que ser adulto é ser ranzinza, um ditado tibetano diz que se um problema é grande demais, não pense nele e se ele é pequeno demais, pra quê pensar nele.

Dá pra ser um homem de negócios e tomar iogurte com o dedo ou uma advogada de sucesso que adora rir de si mesma por ser estabanada; o que realmente não dá é continuarmos achando que viver é out, que o vento não pode desmanchar o nosso cabelo ou que eu não posso me aventurar a dizer pra alguém: "vamos ter bons e maus momentos e uma hora ou outra, um dos dois ou quem sabe os dois, vão querer pular fora, mas se eu não pedir que fique comigo tenho certeza de que vou me arrepender pelo resto da vida".

Antes idiota que infeliz !

Arnaldo Jabor

--------------
Contribuição da Aninha.
Ela viu que não tinha
nenhum texto do Arnaldo aqui e escolheu esse
a dedo!!!
Um bjo no coração lindinha!!!
Obrigado!!!


Powered by
Qumana

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

A carta que não foi mandada

Paris, outono de 73
Estou no nosso bar mais uma vez
E escrevo pra dizer
Que é a mesma taça e a mesma luz
Brilhando no champanhe em vários tons azuis
No espelho em frente eu sou mais um freguês
Um homem que já foi feliz, talvez
E vejo que em seu rosto correm
lágrimas de dor
Saudades, certamente, de algum grande amor

Mas ao vê-lo assim tão triste e só
Sou eu que estou chorando
Lágrimas iguais
E, a vida é assim, o tempo passa
E fica relembrando
Canções do amor demais
Sim, será mais um, mais um qualquer
Que vem de vez em quando
E olha para trás
É, existe sempre uma mulher
Pra se ficar pensando
Nem sei... nem lembro mais....

Vinícius de Moraes

Powered by Qumana

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

A Gente Cresce

Enquanto sofre daquele jeito que parece que o mundo vai acabar. E em meio à alegria. A gente cresce com a ajuda dos amigos, e a despeito dos inimigos. A gente cresce quando acorda às cinco da manhã para acabar um trabalho, e quando não consegue ir trabalhar às nove, porque ainda está meio bêbado. A gente cresce enquanto planeja o cinema para o horário mais barato - e viável, e quando paga a conta de três dígitos no bistrot. A gente cresce trabalhando as férias inteiras para colocar a vida em dia. E descobrindo que certas coisas não puderam ser consertadas. A gente cresce quando ama e o coração está com o tamanho três vezes maior do que o normal. Mas também cresce quando não está amando ninguém.

A gente cresce detectando problemas de saúde por conta da vida sedentária, e correndo contra o vento numa manhã ensolarada de domingo. A gente cresce lutando por uma amizade que nos marcou, e depois entregando os pontos - e achando que ela foi embora para nunca mais voltar. A gente cresce brilhando, sendo reconhecido pelos próprios méritos. E quando tudo parece conspirar para mostrar onde erramos. A gente cresce no meio daquela ansiedade insuportável, aquela sensação de que o mundo está se fechando ao redor de nós. Mas também cresce quando desiste de ter o controle da vida, deixando ela acontecer como for possível.

A gente cresce enquanto transa, desejando que estivesse fazendo amor. A gente cresce em meio à serenidade - e à turbulência. A gente cresce enquanto se sente patinho feio, e enquanto irradia beleza por todos os poros. A gente cresce enquanto sente medo - e quando resolve encará-lo de frente. A gente cresce na incoerência entre discurso e prática. A gente cresce levando vida de adolescente, e ansiando pelas sextas-feiras já no domingo à noite. A gente cresce fazendo dívidas - e planos - de gente grande. A gente cresce fazendo movimentos para mudar o que pode. A gente cresce desistindo de mudar o mundo. A gente cresce percebendo que não pode tudo, e se dizendo um monte de "nãos". A gente cresce ouvindo, finalmente, alguns "sim's". A gente cresce deixando o orgulho para trás, e pedindo ajuda para quem ama. A gente cresce recebendo ajuda de onde menos espera.
A gente cresce com tudo e apesar de tudo. E acima de tudo. A gente cresce.


Autor Desconhecido

Powered by Qumana

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Tu e Eu

(Composition, por Jackson Pollock)

Somos diferentes, tu e eu.
Tens forma e graça
e a sabedoria de só saber crescer
até dar pé.
Eu não sei onde quero chegar
e só sirvo para uma coisa
- que não sei qual é!
És de outra pipa
e eu de um cripto.
Tu, lipa
Eu, calipto.

Gostas de um som tempestade
roque lenha
muito heavy
Prefiro o barroco italiano
e dos alemães
o mais leve.
És vidrada no Lobo
eu sou mais albônico.
Tu, fão.
Eu, fônico.

És suculenta
e selvagem
como uma fruta do trópico
Eu já sequei
e me resignei
como um socialista utópico.
Tu não tens nada de mim
eu não tenho nada teu.
Tu, piniquim.
Eu, ropeu.

Gostas daquelas festas
que começam mal e terminam pior.
Gosto de graves rituais
em que sou pertinente
e, ao mesmo tempo, o prior.
Tu és um corpo e eu um vulto,
és uma miss, eu um místico.
Tu, multo.
Eu, carístico.

És colorida,
um pouco aérea,
e só pensas em ti.
Sou meio cinzento,
algo rasteiro,
e só penso em Pi.
Somos cada um de um pano
uma sã e o outro insano.
Tu, cano.
Eu, clidiano.

Dizes na cara
o que te vem a cabeça
com coragem e ânimo.
Hesito entre duas palavras,
escolho uma terceira
e no fim digo o sinônimo.
Tu não temes o engano
enquanto eu cismo.
Tu, tano.
Eu, femismo.


Luiz Fernando Veríssimo
--------------
Contribuição da prima!!!!
Brigadão Nathalie!!!! =D

sexta-feira, 27 de julho de 2007

A dor que dói mais

(Amor a Todas as Horas, por Simon Silva)

Trancar o dedo numa porta dói.
Bater com o queixo no chão dói.
Torcer o tornozelo dói.
Um estalo, um soco, um pontapé, doem.
Dói bater a cabeça na esquina da mesa, dói morder a língua, dói
cólica, cárie e pedra no rim.
Mas o que mais dói é a saudade.
Saudade de um irmão que mora longe.
Saudade de uma brincadeira da infância.
Saudade de um filho que estuda fora.
Saudade do gosto de uma fruta que não se encontra mais.
Saudade do pai que morreu, do amigo imaginário que nunca existiu.
Saudade de uma cidade.
Saudade da gente mesmo, que o tempo não perdoa.
Doem essas saudades todas.
Mas a saudade que mais dói é a saudade de quem se ama.
Saudade da pele, do cheiro, dos beijos.
Saudade da presença, e até da ausência consentida.
Você podia ficar na sala e ela no quarto, sem se verem, mas sabiam-se lá.
Você podia ir para o dentista e ela para a faculdade, mas sabiam-se onde.
Você podia ficar o dia sem vê-la, ela o dia sem vê-lo, mas sabiam-se amanhã.
Contudo, quando o amor de um acaba, ou torna-se menor, ao outro
sobra uma saudade que ninguém sabe como deter.
Saudade é basicamente não saber.
Não saber mais se ela continua chorando num ambiente mais frio.
Não saber se ele continua sem fazer a barba por causa daquela alergia.
Não saber se ela ainda usa aquela saia.
Não saber se ele foi à consulta com o dermatologista como prometeu.
Não saber se ela tem comido bem por causa daquela mania de estar sempre ocupada;
se ele continua a trabalhar no relatório;
se ela aprendeu a conduzir;
se ele continua preferindo Stout;
se ela continua preferindo sumo;
se ele continua sorrindo com aqueles olhinhos apertados;
se ela continua dançando daquele jeitinho enlouquecedor;
se ele continua abraçando tão bem;
se ela continua gostando de Massas;
se ele continua amando;
se ela continua a chorar até nas comédias.
Saudade é não saber mesmo!
Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais compridos;
Não saber como encontrar tarefas que lhe cessem o pensamento;
Não saber como conter as lágrimas diante de uma música;
Não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche.
Saudade é não querer saber se ela está com outro, e ao mesmo tempo querer.
É não saber se ele está feliz, e ao mesmo tempo perguntar a
todos os amigos por isso...
É não querer saber se ele está mais magro, se ela está mais bela.
Saudade é nunca mais saber de quem se ama, e ainda assim doer.
Saudade é isso que senti enquanto estive escrevendo e o que
você, provavelmente, está sentindo agora depois que acabou de ler...

Martha Medeiros

Papo dispersivo sobre a paixão

(Nude and Still Life, por Pablo Picasso)

As pessoas amam muito mais a expectativa do amor possível que o amor propriamente dito.

Daí a intensidade dos impulsos bloqueados, impedidos de expansão e movimento na direção do objeto amado. Os ‘‘grandes amores’’ da literatura são grandes não por serem amores, mas por serem impossíveis. Os grandes amores da vida real só quem sente é que sabe. A impossibilidade de dimensionar um impulso afetivo carrega de energia a fantasia. E essa se encarrega de dar dimensão ao que o exercício da relação talvez tirasse.

Na paixão impossível só estão as projeções do que idealizamos, pretendemos ou não conseguimos viver em nosso cotidiano. Daí ser fácil entender sua força, sua obsessiva presença na cabeça dos enamorados. É por isso, aliás, que só é musa quem é inatingível. Case-se com a sua musa e acordará com uma jararaca... Case-se com quem ama e será feliz.

Quer se ver livre de uma paixão colossal? Vá viver com a pessoa objeto da paixão (observem, por favor, que não estou usando a palavra amor). Aliás já está nos clássicos e mesmo antes deles, nos antigos, quando diziam que ‘‘A conquista enobrece e a posse avilta’’. Ou como dizia Goethe: ‘‘Nas batalhas da paixão ganha aquele que foge’’.

Quantas vezes as relações humanas terminam ou se interrompem sem terem esgotado o potencial de possibilidades adivinhadas, intuídas, sentidas. Aí, o que não se esgotou clama por vir à tona e muitas vezes ameaça ocupar (e às vezes ocupa, efetivamente) todo o ‘ego’. Não é por outra razão que o apaixonado é o maior dos egoístas. Ao dedicar tudo ao objeto da paixão, está é alimentando a própria necessidade seja de sofrimento, de idealização, de felicidade ou de fantasia. Entupido de impossibilidade, ele clama. E a isso muitos chamam de amor. Mas amor é coisa muito diversa. Amor não clama nem reclama: amor dá.

Artur da Távola
-----------
Contribuição da miguxa Gabriela Rosa.
Bjão enorme!!!!
Brigado!!!! =)

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Conto de fadas para mulheres do século XXI

Era uma vez… numa terra muito distante…

Uma princesa linda, independente e cheia de auto-estima se deparou com uma rã enquanto contemplava a natureza e pensava em como o maravilhoso lago do seu castelo estava de acordo com as conformidades ecológicas.

Então a rã pulou para o seu colo e disse:

- Linda princesa, eu já fui um príncipe muito bonito. Uma bruxa má lançou-me um encanto e eu transformei-me
nesta rã asquerosa. Um beijo teu, no entanto, há de me transformar de novo num belo príncipe e poderemos casar e constituir lar feliz no teu lindo castelo. A tua mãe poderia vir morar conosco e tu poderias preparar o meu jantar, lavar as minhas roupas, criar os nossos filhos e seríamos felizes para sempre…”

Naquela noite, enquanto saboreava pernas de rã à sautée, acompanhadas de um cremoso molho e de um finíssimo vinho branco, a princesa sorria, pensando consigo mesma:

- Nem morta!

Luis Fernando Veríssimo

terça-feira, 19 de junho de 2007

A noite do meu bem

Hoje eu quero a rosa mais linda que houver
E a primeira estrela que vier
Para enfeitar a noite do meu bem
Hoje eu quero a paz de criança dormindo
E o abandono das flores se abrindo
Para enfeitar a noite do meu bem
Quero a alegria de um barco voltando
Quero a ternura de mãos se encontrando
Para enfeitar a noite do meu bem
Ah! Eu quero o amor mais profundo
Eu quero toda a beleza do mundo
Para enfeitar a noite do meu bem
Ah! Como este bem demorou a chegar
Eu já nem sei se terei no olhar
Toda a ternura que eu quero lhe dar.

Dolores Duran

Retrato de corpo inteiro

No azul do teu peito
ensolarado
há espelhos de cristal
multiplicando imagens.

Emergem risos
lágrimas
promessas
olhares infantis
perdidamente
infinitamente
apaixonados
adolescentes.

A vida renasce
das tuas mãos
tremulas
entrelaçadas
— há muito tempo entrelaçadas —
Reencontradas.

No espaço secreto
da memória,
nosso retrato
- De corpo inteiro -
É o quadro mais bonito
que se pode iluminar.

Anna Maria Feitosa

domingo, 17 de junho de 2007

Via Láctea

"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso"! E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquanto
A via láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol , saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora! "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"

E eu vos direi: "Amai para entendê-las:
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas".

Olavo Bilac

sábado, 26 de maio de 2007

Venturosa de sonhar-te

(À espera no horto florestal, por Washington Maguetas)

Venturosa de sonhar-te,
à minha sombra me deito.
(Teu rosto, por toda parte,
mas, amor, só no meu peito!)

–Barqueiro, que céu tão leve!
Barqueiro, que mar parado!
Barqueiro, que enigma breve,
o sonho de ter amado!

Em barca de nuvem sigo:
e o que vou pagando ao vento
para lever-te comigo
é suspiro e pensamento.

–Barqueiro, que doce instante!
Barqueiro, que instante imenso,
não do amado nem do amante:
mas de amar o amor que penso!

Cecília Meireles

terça-feira, 22 de maio de 2007

Teu corpo/meu espaço

Teu corpo é raiz
rasgando a terra nua
do meu sexo

Teu corpo é vertical
onde os meus dedos tocam as distâncias

Teu corpo é diálogo sem palavras
O grito em ressonância
no meu espaço

Manuela Amaral

Nua

(Gabrielle with bare breasts, por Renoir)


Porque me despes completamente
sem que eu nem perceba...
E quando nua
por incrível que pareça
sou mais pura...
Porque vou ao teu encontro
despojada de critérios...
liberto os mistérios
sem perder o encanto
do prazer...
Porque
quando nua
sou única
e exclusivamente
tua...

Isabel Machado

Moça na cama

Papai tosse, dando aviso de si,
vem examinar as tramelas,
uma a uma.
A cumeeira da casa é de peroba do campo,
posso dormir sossegada. Mamãe vem me cobrir,
tomo a bênção e fujo atrás dos homens,
me contendo por usura, fazendo render o bom.
Se me tocar, desencadeio as chusmas,
os peixinhos cardumes.
Os topázios me ardem onde mamãe sabe,
por isso ela me diz com ciúmes:
dorme logo, que é tarde.
Sim, mamãe, já vou:
passear na praça em ninguém me ralhar.
Adeus, que me cuido, vou campear nos becos,
moa de moços no bar, violão e olhos
difíceis de sair de mim.
Quando esta nossa cidade ressonar em neblina,
os moços marianos vão me esperar na matriz.
O céu é aqui, mamãe.
Que bom não ser livro inspirado
o catecismo da doutrina cristã,
posso adiar meus escrúpulos
e cavalgar no topor
dos monsenhores podados.
Posso sofrer amanhã
a linda nódoa de vinho
das flores murchas no chão.
As fábricas têm os seus pátios,
os muros tem seu atrás.
No quartel são gentis comigo.
Não quero chá, minha mãe,
quero a mão do frei Crisóstomo
me ungindo com óleo santo.
Da vida quero a paixão.
E quero escravos, sou lassa.
Com amor de zanga e momo
quero minha cama de catre,
o santo anjo do Senhor,
meu zeloso guardador.
Mas descansa, que ele é eunuco, mamãe.

Adélia Prado

Amor é um carpinteiro

Amor é um carpinteiro
Que ri com ar de matreiro,
Cerrando forte e ligeiro
Na tenda do coração...
Com toda a proficiência
Põe pregos de resistência,
Ferrolhos na consciência,
Tranca as portas da razão

Adelaide de Castro Alves Guimarães

quinta-feira, 26 de abril de 2007

As Possibilidades Perdidas

Fiquei sabendo que um poeta mineiro que eu não conhecia, chamado Emilio Moura, teria completado 100 anos neste mês de agosto, caso vivo fosse. Era amigo de outro grande poeta, Drummond. Chegaram a mim alguns versos dele, e um em especial me chamou a atenção: "Viver não dói. O que dói é a vida que não se vive".

Definitivo, como tudo o que é simples. Nossa dor não advém das coisas vividas, mas das coisas que foram sonhadas e não se cumpriram.

Por que sofremos tanto por amor? O certo seria a gente não sofrer, apenas agradecer por termos conhecido uma pessoa tão bacana, que gerou em nós um sentimento intenso e que nos fez companhia por um tempo razoável, um tempo feliz. Sofremos por quê?

Porque automaticamente esquecemos o que foi desfrutado e passamos a sofrer pelas nossas projeções irrealizadas, por todas as cidades que gostaríamos de ter conhecido ao lado do nosso amor e não conhecemos, por todos os filhos que gostaríamos de ter tido junto e não tivemos, por todos os shows e livros e silêncios que gostaríamos de ter compartilhado, e não compartilhamos. Por todos os beijos cancelados, pela eternidade interrompida.

Sofremos não porque nosso trabalho é desgastante e paga pouco, mas por todas as horas livres que deixamos de ter para ir ao cinema, para conversar com um amigo, para nadar, para namorar. Sofremos não porque nossa mãe é impaciente conosco, mas por todos os momentos em que poderíamos estar confidenciando a ela nossas mais profundas angústias se ela estivesse interessada em nos compreender. Sofremos não porque nosso time perdeu, mas pela euforia sufocada. Sofremos não porque envelhecemos, mas porque o futuro está sendo confiscado de nós, impedindo assim que mil aventuras nos aconteçam, todas aquelas com as quais sonhamos e nunca chegamos a experimentar.

Como aliviar a dor do que não foi vivido? A resposta é simples como um verso: se iludindo menos e vivendo mais. "

Martha Medeiros

Pequeno Tratado sobre a Mortalidade do Amor

Todos os dias morre um amor. Quase nunca percebemos, mas todos os dias morre um amor. Às vezes de forma lenta e gradativa, quase indolor, após anos e anos de rotina. Às vezes melodramaticamente, como nas piores novelas mexicanas, com direito a bate-bocas vexaminosos, capazes de acordar o mais surdo dos vizinhos. Morre em uma cama de motel ou em frente à televisão de domingo. Morre sem beijo antes de dormir, sem mãos dadas, sem olhares compreensivos, com gosto de lágrima nos lábios. Morre depois de telefonemas cada vez mais espaçados, cartas cada vez mais concisas, beijos que esfriam aos poucos. Morre da mais completa e letal inanição.

Todos os dias morre um amor. Às vezes com uma explosão, quase sempre com um suspiro. Todos os dias morre um amor, embora nós, românticos mais na teoria do que na prática, relutemos em admitir. Porque nada é mais dolorido do que a constatação de um fracasso. De saber que, mais uma vez, um amor morreu. Porque, por mais que não queiramos aprender, a vida sempre nos ensina alguma coisa. E esta é a lição: amores morrem.

Todos os dias um amor é assassinado. Com a adaga do tédio, a cicuta da indiferença, a forca do escárnio, a metralhadora da traição. A sacola de presentes devolvidos, os ponteiros tiquetaqueando no relógio, o silêncio ensurdecedor depois de uma discussão: todo crime deixa evidências.

Todos nós fomos assassinos um dia. Há aqueles que, feito Lee Harvey Oswald, se refugiam em salas de cinema vazias. Ou preferem se esconder debaixo da cama, ao lado do bicho-papão. Outros confessam sua culpa em altos brados, fazendo de penico os ouvidos de infelizes garçons. Há aqueles que negam, veementemente, participação no crime, e buscam por novas vítimas em salas de chat ou pistas de danceteria, sem dor ou remorso. Os mais periculosos aproveitam sua experiência de criminosos para escrever livros de auto-ajuda com nomes paradoxais como O Amor Inteligente ou romances açucarados de banca de jornal, do tipo A Paixão Tem Olhos Azuis, difundindo ao mundo ilusões fatais aos corações sem cicatrizes.

Existem os amores que clamam por um tiro de misericórdia: corcéis feridos.

Existem os amores-zumbis, aqueles que se recusam a admitir que morreram. São capazes de perdurar anos, mortos-vivos sobre a Terra teimando em resistir à base de camas separadas, beijos burocráticos, sexo sem tesão. Estes não querem ser sacrificados, e, à semelhança dos zumbis hollywoodianos, também se alimentam de cérebros humanos, definhando paulatinamente até se tornarem laranjas chupadas.

Existem os amores-vegetais, aqueles que vivem em permanente estado de letargia, comuns principalmente entre os amantes platônicos que recordarão até o fim de seus dias o sorriso daquela ruivinha da 4ª série, ou entre fãs que ainda suspiram em frente a um pôster do Elvis Presley (e, pior, da fase havaiana). Mas titubeio em dizer que isso possa ser classificado como amor (bah, isso não é amor; amor vivido só do pescoço pra cima não é amor).

Existem, por fim, os amores-fênix. Aqueles que, apesar da luta diária pela sobrevivência, das contas a pagar, da paixão que escasseia com o decorrer dos anos, da TV ligada na mesa-redonda ao final do domingo, das calcinhas penduradas no chuveiro e das brigas que não levam a nada, ressuscitam das cinzas a cada fim de dia e perduram - teimosos, e belos, e cegos, e intensos. Mas estes são raríssimos, e há quem duvide de sua existência. Alguns os chamam de amores-unicórnio, porque são de uma beleza tão pura e rara que jamais poderiam ter existido, a não ser como lendas. Mas não quero acreditar nisso.

Um dia vou colocar um anúncio, bem espalhafatoso, no jornal.

PROCURA-SE: AMOR-FÊNIX
(oferece-se generosa recompensa)

Alexandre Inagaki

segunda-feira, 23 de abril de 2007

Sentir-se amado

O cara diz que te ama, então tá. Ele te ama.

Sua mulher diz que te ama, então assunto encerrado.

Você sabe que é amado porque lhe disseram isso, as três palavrinhas mágicas. Mas saber-se amado é uma coisa, sentir-se amado é outra, uma diferença de milhas, um espaço enorme para a angústia instalar-se.

A demonstração de amor requer mais do que beijos, sexo e verbalização, apesar de não sonharmos com outra coisa: se o cara beija, transa e diz que me ama, tenha a santa paciência, vou querer que ele faça pacto de sangue também?

Pactos. Acho que é isso. Não de sangue nem de nada que se possa ver e tocar. É um pacto silencioso que tem a força de manter as coisas enraizadas, um pacto de eternidade, mesmo que o destino um dia venha a dividir o caminho dos dois.

Sentir-se amado é sentir que a pessoa tem interesse real na sua vida, que zela pela sua felicidade, que se preocupa quando as coisas não estão dando certo, que sugere caminhos para melhorar, que coloca-se a postos para ouvir suas dúvidas e que dá uma sacudida em você, caso você esteja delirando. "Não seja tão severa consigo mesma, relaxe um pouco. Vou te trazer um cálice de vinho".

Sentir-se amado é ver que ela lembra de coisas que você contou dois anos atrás, é vê-la tentar reconciliar você com seu pai, é ver como ela fica triste quando você está triste e como sorri com delicadeza quando diz que você está fazendo uma tempestade em copo d´água. "Lembra que quando eu passei por isso você disse que eu estava dramatizando? Então, chegou sua vez de simplificar as coisas. Vem aqui, tira este sapato."

Sentem-se amados aqueles que perdoam um ao outro e que não transformam a mágoa em munição na hora da discussão. Sente-se amado aquele que se sente aceito, que se sente bem-vindo, que se sente inteiro. Sente-se amado aquele que tem sua solidão respeitada, aquele que sabe que não existe assunto proibido, que tudo pode ser dito e compreendido. Sente-se amado quem se sente seguro para ser exatamente como é, sem inventar um personagem para a relação, pois personagem nenhum se sustenta muito tempo. Sente-se amado quem não ofega, mas suspira; quem não levanta a voz, mas fala; quem não concorda, mas escuta.

Agora sente-se e escute: eu te amo não diz tudo

Martha Medeiros

domingo, 1 de abril de 2007

Quem diz que o amor é falso

(Meditative Rose, por Salvador Dali)

Quem diz que Amor é falso ou enganoso,
ligeiro, ingrato, vão, desconhecido,
Sem falta lhe terá bem merecido
Que lhe seja cruel ou rigoroso.

Amor é brando, é doce e é piedoso;
Quem o contrário diz não seja crido:
Seja por cego e apaixonado tido,
E aos homens e inda aos deuses odioso.

Se males faz Amor, em mim se vêem;
Em mim mostrando todo o seu rigor,
Ao mundo quis mostrar quanto podia.

Mas todas suas iras são de amor;
Todos estes seus males são um bem,
Que eu por todo outro bem não trocaria.

Luís Vaz de Camões

sábado, 17 de março de 2007

Canção do Amor-Perfeito

O tempo seca a beleza.
Seca o amor, seca as palavras.
Deixa tudo solto, leve,
Desunido para sempre
Como as areias nas águas.

O tempo seca a saudade,
Seca as lembranças e as lágrimas.
Deixa algum retrato, apenas,
Vagando seco e vazio
Como estas conchas das praias.

O tempo seca o desejo
E suas velhas batalhas.
Seca o frágil arabesco,
Vestígio do musgo humano,
Na densa turfa mortuária.

Esperarei pelo tempo
Com suas conquistas áridas.
Esperarei que te seque,
Não na terra, Amor-Perfeito,
Num tempo depois das almas.

Cecília Meireles

sexta-feira, 9 de março de 2007

Felicidade!!

(O primeiro beijo, por Bouguereau)

Felicidade é juntar minha mão com a sua,
É sentir teu olhar calmo e profundo no meu,
É ter meu rosto acariciado por ti,
É ver flores silvestres enfeitando o mundo.
Felicidade é adormecer em teus braços,
É aconchegar-me junto ao teu peito
Numa noite docemente linda
Com o céu cheio de estrelas, a meu jeito.

Felicidade é declarar um verso
Cheio de encanto e dizer: "Eu te amo"
Com toda a força que há neste universo.
Felicidade é ter emoções com ternura,
É o palpitar do meu coração ao te ver,
Sempre forte e acelerado
Quando estou ao seu lado,
Quando penso em te amar.

Felicidade é querer-te meu menino, meu homem,
Quero-te minha vida, minha máxima vida,
Quero-te meu amor, e por inteiro.
E o nosso amor? Este sim
É o que me dá força para viver.
Para sempre te amarei,
Sabe por quê? Porque
Felicidade é viver com você!!

Gardênia Salvador Rodrigues

Ninguém Venha Me Dar Vida

Ninguém venha me dar vida,
que estou morrendo de amor,
que estou feliz de morrer,
que não tenho mal nem dor,
que estou de sonho ferido,
que não me quero curar,
que estou deixando de ser,
e não quero me encontrar,
que estou dentro de um navio,
que sei que vai naufragar,
já não falo e ainda sorrio,
porque está perto de mim
o dono verde do mar
que busquei desde o começo,
e estava apenas no fim.

Corações, por que chorais?
Preparai meu arremesso
para as algas e os corais.

Fim ditoso, hora feliz:
guardai meu amor sem preço,
que só quis quem não me quis

Cecília Meireles

Não te Amo

Não te amo, quero-te: o amor vem d'alma.
E eu n 'alma – tenho a calma,
A calma – do jazigo.
Ai! não te amo, não.

Não te amo, quero-te: o amor é vida.
E a vida – nem sentida
A trago eu já comigo.
Ai, não te amo, não!

Ai! não te amo, não; e só te quero
De um querer bruto e fero
Que o sangue me devora,
Não chega ao coração.

Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela.
Quem ama a aziaga estrela
Que lhe luz na má hora
Da sua perdição?

E quero-te, e não te amo, que é forçado,
De mau, feitiço azado
Este indigno furor.
Mas oh! não te amo, não.

E infame sou, porque te quero; e tanto
Que de mim tenho espanto,
De ti medo e terror...
Mas amar!... não te amo, não.

Almeida Garrett

quinta-feira, 1 de março de 2007

Velho Tema, a Saudade

Quem não a canta? Quem? Quem não a canta e sente?
-Chama que já passou mas que assim mesmo é chama...
A Saudade, eu a sinto infinda, confidente.
Que de longe me acena e me fascina e chama...

Mágoa de todo o mundo e que tem toda gente:
Uns sorrisos de mãe... uns sorrisos de dama...
Um segredo de amor que se desfaz e mente...
Quem não os teve? Quem? Quem não os teve e os ama?

Olhos postos ao léu, altívagos, à toa,
Quantas vezes tu mesmo, a cismar, de repente
Te ficaste gozando uma saudade boa?

Se vês que em teu passado uma saudade adeja,
-Faze que uma saudade a ti seja o presente!
-Faze que tua morte uma saudade seja!

Jorge de Lima

Arte de Amar

Se queres sentir a felicidade de amar,
Esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus - ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.
Deixe o teu corpo entender-se com outro corpo,
porque os corpos se entendem, mas as almas não

Manoel Bandeira

terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Êxtase

(O pescador e a Sereia, por Frederic Leighton )


Num jacto impulsivo e repentino
Eu vi, como uma sinfonia alta
E excessivamente explosiva,
Em meu rosto o teu rosto!
Em minha boca, tua boca!!

No toque mais louco,
Da coragem que nos torna um só
Por estranha inquietação,
Como se fosse uma aventura única.

Misturam-se nossas águas,
Em paixão desmedida.
Desnudado e atrevido, me tornaste mulher
Me fizeste mais Feliz!

Olho nos olho, tu me devoras!
Corpo a corpo, te me torturas!
E me consomes, completas!

Lá fora, bem ao longe...A chuva se esvai.
Tu te repartes lépido e fogoso,
Te agitas e me excita com mil idéias bonitas
És deliciosamente faceiro e sedutor!!

Gardênia Salvador Rodrigues

Segunda Impaciência do Poeta

Cresce o desejo, falta o sofrimento,
Sofrendo morro, morro desejando,
Por uma, e outra parte estou penando
Sem poder dar alívio a meu tormento.

Se quero declarar meu pensamento,
Está-me um gesto grave acobardando,
E tenho por melhor morrer calando,
Que fiar-me de um néscio atrevimento.

Quem pretende alcançar, espera, e cala,
Porque quem temerário se abalança,
Muitas vezes o amor o desiguala.

Pois se aquele, que espera se alcança,
Quero ter por melhor morrer sem fala,
Que falando, perder toda esperança.

Gregório de Matos

terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Amor Bastante

(Alameda do Jardim Botânico, por Washington Maguetas)


Quando eu vi você
Tive uma idéia brilhante
Foi como se eu olhasse
De dentro de um diamante
E meu olho ganhasse
Mil faces num só instante

Basta um instante
e você tem amor bastante

Um bom poema
Leva anos
Cinco jogando bola,
Mais cinco estudando sânscrito,
Seis carregando pedra,
Nove namorando a vizinha,
Sete levando porrada,
Quatro andando sozinho,
Três mudando de cidade,
Dez trocando de assunto,
Uma eternidade, eu e você,
Caminhando junto
Paulo Leminski

domingo, 11 de fevereiro de 2007

Gosto quando te calas

(Flores no vaso, por Renoir)

Gosto quando te calas porque estás como ausente,
e me ouves de longe, minha voz não te toca.
Parece que os olhos tivessem de ti voado
e parece que um beijo te fechara a boca.

Como todas as coisas estão cheias da minha alma
emerge das coisas, cheia da minha alma.
Borboleta de sonho, pareces com minha alma,
e te pareces com a palavra melancolia.

Gosto de ti quando calas e estás como distante.
E estás como que te queixando, borboleta em arrulho.
E me ouves de longe, e a minha voz não te alcança:
Deixa-me que me cale com o silêncio teu.

Deixa-me que te fale também com o teu silêncio
claro como uma lâmpada, simples como um anel.
És como a noite, calada e constelada.
Teu silêncio é de estrela, tão longinqüo e singelo.

Gosto de ti quando calas porque estás como ausente.
Distante e dolorosa como se tivesses morrido.
Uma palavra então, um sorriso bastam.
E eu estou alegre, alegre de que não seja verdade.
Pablo Neruda

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

Amar e ser amado

Amar e ser amado! Com que anelo
Com quanto ardor este adorado sonho
Acalentei em meu delírio ardente
Por essas doces noites de desvelo!
Ser amado por ti, o teu alento
A bafejar-me a abrasadora frente!
Em teus olhos mirar meu pensamento,
Sentir em mim tu’alma, ter só vida
P’ra tão puro e celeste sentimento:
Ver nossas vidas quais dois mansos rios,
Juntos, juntos perderem-se no oceano —,
Beijar teus dedos em delírio insano
Nossas almas unidas, nosso alento,
Confundido também, amante — amado —
Como um anjo feliz... que pensamento!?

"Castro Alves"

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

As sem-razões do amor

(Calais sands at low water, por William Turner)

Eu te amo porque te amo,
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor

"Carlos Drummond de Andrade"

Poeminha Sentimental

(Water lilies (The clouds), por Monet)

O meu amor, o meu amor, Maria
É como um fio telegráfico da estrada
Aonde vêm pousar as andorinhas...
De vez em quando chega uma
E canta
(Não sei se as andorinhas cantam, mas vá lá!)
Canta e vai-se embora
Outra, nem isso,
Mal chega, vai-se embora.
A última que passou
Limitou-se a fazer cocô
No meu pobre fio de vida!
No entanto, Maria, o meu amor é sempre o mesmo:
As andorinhas é que mudam
"Mário Quintana"

O Tempo

(Wheatfield under thunderclouds, por van Gogh)

Com o tempo, você vai percebendo que
para ser feliz com uma outra pessoa:
Você precisa, em primeiro lugar, não precisar dela.
Percebe também que aquela pessoa que você ama
(ou acha que ama) e que não quer nada com você,
definitivamente, não é a pessoa da sua vida.
Você aprende a gostar de você,
a cuidar de você e, principalmente,
a gostar de quem também gosta de você.
O segredo é não correr atrás das borboletas...
é cuidar do jardim para que elas venham até você.
No final das contas, você vai achar não quem
você estava procurando,
mas quem estava procurando por você!

"Mário Quintana"
------------------------------------
Miga minha do meu coração que me
mandou esse!!!!! Brigadão Gardênia!!!!!!

Todas as Cartas de Amor são Ridículas

(Meule, effet de neige, le matin, por Monet)

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

Pra quem ainda vier a me amar

(Buquê de flores da primavera, por Renoir)

Quero dizer que te amo só de amor.
Sem idéias, palavras, pensamentos.
Quero fazer que te amo só de amor.
Com sentimentos, sentidos, emoções.
Quero curtir que te amo só de amor.
Olho no olho, cara a cara, corpo a corpo.

Quero querer que te amo só de amor.
São sombras as palavras no papel.
Claro-escuros projetados pelo amor,
dos delírios e dos mistérios do prazer.
Apenas sombras as palavras no papel.

Ser-não-ser refratados pelo amor no
sexo e nos sonhos dos amantes.
Fátuas sombras as palavras no papel.
Meu amor te escrevo feito um poema
de carne, sangue, nervos e sêmen.

São versos que pulsam, gemem e fecundam.
Meu poema se encanta feito o amor
dos bichos livres às urgências dos cios
e que jogam, brincam, cantam
e dançam fazendo o amor como faço o poema.

Quero a vida as claras superfícies onde
terminam e começam meus amores.
Eu te sinto na pele, não no coração.
Quero do amor as tenras superfícies
onde a vida é lírica porque telúrica,
onde sou épico porque ébrio e lúbrico.

Quero genitais todas as nossas superfícies.
Não há limites para o prazer,
meu grande amor, mas virá sempre antes,
não depois da excitação.

Meu grande amor, o infinito é um recomeço.
Não há limites para se viver um grande amor.
Mas só te amo porque me dás o gozo
e não gozo mais porque eu te amo.

Não há limites para o fim de um grande amor.
Nossa nudez, juntos, não se completa nunca,
mesmo quando se tornam
quentes e congestionadas, úmidas
e latejantes todas as mucosas.

A nudez a dois não acontece nunca,
porque nos vestimos um com o corpo do outro,
para inventar deuses na solidão do nós.
Por isso a nudez, no amor, não satisfaz nunca.
Porque eu te amo, tu não precisas de mim.
Porque tu me amas, eu não preciso de ti.

No amor, jamais nos deixamos de completar.
Somos, um para o outro,
deliciosamente desnecessários.
O amor é tanto, não quanto.
Amar é enquanto, portanto. Ponto.
Roberto Freire

Tenho tanto sentimento

(Parc Monceau, por Monet)

Tenho tanto sentimento
Que é freqüente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.
Fernando Pessoa

A segunda

Tenho uma tese que é a seguinte: tantos casamentos dão errado porque o homem só casa certo na segunda vez. Faça um teste com seus amigos, ou com homens famosos: de quantos você diz que "agora acertaram", depois de um primeiro casamento precipitado, equivocado e obviamente fracassado? A segunda mulher geralmente é tudo que a primeira não foi, ou devia ser, mas não era. Não é uma esposa, é uma retificação.

Dos homens que se casam cedo pode-se dizer o mesmo que dizemos dos vestibulandos obrigados a escolher uma carreira para toda a vida quando ainda não sabem escolher uma gravata. Falta-lhes a maturidade que só terão quando conhecerem melhor a vida e a si mesmos, e escolherem a segunda. A segunda mulher é como a revelação de que a sua vocação, afinal, não era a engenharia de sistemas, era o paisagismo. Ou que você casou com uma idealização sexual, ou com a sua mãe, ou com outra alucinação igualmente provisória.

Antigamente só se casava uma vez, mas aí a segunda mulher era a amante. O homem vivia com o engano e com a correção ao mesmo tempo. Para não dizerem que a tese é machista, ela também serve para mulheres, com uma complicação: o segundo marido só é o certo para a mulher se ela também for a sua segunda.

Se ela for a primeira ou a terceira - ou a quarta ou a quinta, etc. - não funcionará. Ele será o seu segundo, e portanto teoricamente o certo, mas com um defeito grave: ainda estará procurando a sua segunda. Ou já a encontrou e não a reconheceu, e não se contentará com mulher alguma.

Dirá você que conhece primeiros casamentos que deram certo. Certifique-se de que não há nenhum tipo de simulação, que os dois só não partiram para a segunda tentativa por comodismo, ou se não existem segundas ou segundos clandestinos em algum lugar. Se a felicidade for real, é porque aconteceu uma anomalia prevista na tese: a dos homens que casam com a segunda na primeira vez. É raro, mas acontece.

Luis Fernando Veríssimo

Receita de ano novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade

Da chegada do amor

(Picking flowers, por Renoir)

Sempre quis um amor
que falasse
que soubesse o que sentisse.

Sempre quis uma amor que elaborasse
Que quando dormisse
ressonasse confiança
no sopro do sono
e trouxesse beijo
no clarão da amanhecice.

Sempre quis um amor
que coubesse no que me disse.

Sempre quis uma meninice
entre menino e senhor
uma cachorrice
onde tanto pudesse a sem-vergonhice
do macho
quanto a sabedoria do sabedor.

Sempre quis um amor cujo
BOM DIA!
morasse na eternidade de encadear os tempos:
passado presente futuro
coisa da mesma embocadura
sabor da mesma golada.

Sempre quis um amor de goleadas
cuja rede complexa
do pano de fundo dos seres
não assustasse.

Sempre quis um amor
que não se incomodasse
quando a poesia da cama me levasse.

Sempre quis um amor
que não se chateasse
diante das diferenças.

Agora, diante da encomenda
metade de mim rasga afoita
o embrulho
e a outra metade é o
futuro de saber o segredo
que enrola o laço,
é observar
o desenho
do invólucro e compará-lo
com a calma da alma
o seu conteúdo.

Contudo
sempre quis um amor
que me coubesse futuro
e me alternasse em menina e adulto
que ora eu fosse o fácil, o sério
e ora um doce mistério
que ora eu fosse medo-asneira
e ora eu fosse brincadeira
ultra-sonografia do furor,
sempre quis um amor
que sem tensa-corrida-de ocorresse.

Sempre quis um amor
que acontecesse
sem esforço
sem medo da inspiração
por ele acabar.

Sempre quis um amor
de abafar,
(não o caso)
mas cuja demora de ocaso
estivesse imensamente
nas nossas mãos.

Sem senãos.

Sempre quis um amor
com definição de quero
sem o lero-lero da falsa sedução.

Eu sempre disse não
à constituição dos séculos
que diz que o "garantido" amor
é a sua negação.

Sempre quis um amor
que gozasse
e que pouco antes
de chegar a esse céu
se anunciasse.

Sempre quis um amor
que vivesse a felicidade
sem reclamar dela ou disso.

Sempre quis um amor não omisso
e que suas estórias me contasse.

Ah, eu sempre quis uma amor que amasse.

Elisa Lucinda
---------------------------------------------
Esse me foi enviado por uma nova velha amiga que
eu adoro muito, a Lígia. Muito obrigado Li, amei esse
poema!

Quem já não passou por isso...

(por Vicent Van Gogh)

Quem é que nunca teve um Paulo, um Felipe, um Ricardo,
um Júlio ou um Alexandre na vida? Tudo bem, pode ser uma
Juliana, uma Débora, uma Patrícia ou uma Ana...
Paquerar é bom, mas chega uma hora que cansa!
Cansa na hora que você percebe que ter 10 pessoas ao
mesmo tempo é o mesmo que não ter nenhuma, e ter apenas
uma, é o mesmo que possuir 10 ao mesmo tempo!
A "fila" anda, a coleção de "figurinhas" cresce, a conta
de telefone é sempre altíssima. Mas e ai? O que isso te
acrescenta? Nessas horas sempre surge aquela tradicional
perguntinha: Por que aquela pessoa pela qual você
trocaria qualquer programa por um simples filme com
pipoca abraçadinho no sofá da sala não despenca logo na
sua vida??? Se o tal "amor" é impontual e imprevisível que se dane!

Não adianta: as pessoas são impacientes! São e sempre
vão ser! Tem gente que diz que não é... "Eu não sou
ansioso, as coisas acontecem quando tem que acontecer."
Mentira! Por dentro todo ser humano é igual: impaciente,
sonhador, iludido... Jura de pé junto que não, mas vive
sempre em busca da famosa cara metade! Pode dar o nome
que quiser : amor, alma-gêmea, par perfeito, a outra
metade da laranja... No fim dá tudo no mesmo.
Pode soar brega, cafona...Mas é a realidade. Inclusive o
assunto "amor" é sempre cafonérrimo.
Acredito que o status de cafona surgiu porque a grande
maioria das pessoas nunca teve a oportunidade de viver
um grande amor. Poucas pessoas experimentaram nesta vida
a sensação de sonhar acordada, de dormir do lado do
telefone, de ter os olhos brilhando, de desfilar com
aquele sorriso de borboleta azul estampado no rosto...

Não lembro se foi o "Wando" ou se foi o "Reginaldo
Rossi" que disse em uma entrevista que se a Marisa Monte
não tivesse optado pelo "Amor I love you" e que se o
Caetano não tivesse dito "Tô me sentindo muito
sozinho.." eles não venderiam mais nenhum disco. Não
adianta, o público gosta e vibra com o "brega".
Não adianta tapar o sol com a peneira.
Por mais que você não admita: - Você ficou triste porque
o Leonardo diCaprio morreu em Titanic" e ficou feliz
porque a Julia Roberts e o Richard Gere acabaram juntos
em "Uma Linda Mulher";
Existe pelo menos uma música sertaneja ou um pagodinho"
que te deixe com dor de cotovelo;

Quando você está solteiro e vê um casal aos beijos e
abraços no meio da rua você sente a maior inveja;
Você já se pegou escrevendo o seu nome e o da pessoa
pelo qual você esta apaixonada no espelho embaçado do
banheiro, ou num pedacinho de papel;
Você já se viu cantando o mantra "Toca telefone toca" em
alguma das sextas-feiras de sua vida, ou qualquer outro
dia que seja; Você já enfiou os pés pelas mãos alguma vez na vida e se
atirou de cabeça numa "relação" sem nem perceber que
você mal conhecia a outra pessoa e que com este seu
jeito de agir ela te acharia um tremendo louco;
Você, assim como nos contos de fada, sonha em escutar um
dia o tal "E foram felizes para sempre"
Bem , preciso continuar? Ok, acho que não...
Negue o quanto quiser, mas sei que já passou por isso, e
se não passou, não sabe o quanto esta perdendo....

"O problema de resistir a uma tentação é que você pode
não ter uma segunda chance"

"Falo a língua dos loucos, porque não conheço a mórbida
coerência dos lúcidos"

Luiz Fernando Verissimo

A Arte de Gostar de Mulheres

Para as mulheres que merecem ser amadas e desejadas todos os dias. E para os homens aprenderem como gostar de mulher.
( Por Rafael Martí, jornalista e gosta muito de mulher, mas só tem olhos para sua morena linda)

Ainda nos meus tempos de graduação em jornalismo na Uerj, fui assistir a uma palestra do fotógrafo André Arruda, que foi do JB, Globo e trabalhava, entre outras coisas, com moda. Em determinado momento da palestra ele relatava a sua experiência em fotografar nu artístico e soltou a seguinte frase: "Para fotografar nu feminino é preciso gostar de mulher". Eu sorri, porque na minha cabeça aquilo parecia meio óbvio, mas antes que qualquer um fizesse algum comentário ele completou. "Não se trata de gostar de mulher no sentido sexual, ter tesão por mulher nua, essas coisas. Isso pode ter também. Mas se trata de gostar de mulher em um sentido mais profundo. Gostar do universo feminino. Observar que cada calcinha é única, tem uma rendinha diferente e ficar entretido com isso" - afirmou. O fato é que eu concordo com o conceito do Arruda sobre gostar de mulher. Não basta ser heterossexual, o machão latino. Para gostar de verdade de uma mulher são necessários outros requisitos que são raros. Por isso a mulherada anda tão insatisfeita. Sensibilidade é fundamental. Paciência também. O homem que não tem paciência para escutar a necessidade que a mulher tem de falar, ou sensibilidade para cativá-la a cada dia não gosta de mulher. Pode gostar de sexo com mulher. O que é bem diferente. Gostar de mulher é algo além, é penetrar em seu universo, se deliciar com o modo com que ela conta todo o seu dia, minuto por minuto, quando chega do trabalho. Ficar admirando seu corpo, ser um verdadeiro devoto do corpo feminino, as curvas, o cabelo, seios. Mas também cultuar a sagacidade feminina, sua intuição, admirar seu sorriso que é muito mais espontâneo que o nosso. Gostar de mulher é querer fazer a mulher feliz. Levar flores no trabalho sem nenhum motivo a não ser o de ver seu sorriso. É escutar pacientemente todas as queixas da chefa rabugenta, que provavelmente é assim porque seu homem não gosta de mulher. O homem que gosta de mulher não está preocupado em quantas mulheres ele comeu durante a vida, mas sim com a qualidade do sexo que teve. Quantas mulheres ele realizou sexualmente, fazendo-as se sentirem desejadas, amadas, únicas, deusas, na cama e na vida. O homem que gosta de mulher não come mulher. Ele penetra não só no corpo, mas na alma, respirando, sentindo, amando cada pedacinho do corpo, e, é claro, da personalidade. "Para viver um grande amor é necessário ser de sua dama por inteiro", afirmou Vinicius de Morais no poema "Para viver um grande amor". Para amar 'verdadeiramente uma mulher o homem deve ser totalmente fiel, amá-la até a raiz dos cabelos. Admirá-la, se deixar apaixonar todo dia pelo seu sorriso ao despertar e principalmente conquistá-la, seduzi-la, como se fosse a primeira 'vez. O homem que não tem paciência, nem tesão, nem competência para lhe seduzir 'várias e várias vezes, esse, minha amiga, não se iluda, não gosta nem um pouco de mulher. Conquistar o corpo e a alma de uma mulher é algo tão gratificante que tem que ser tentado várias vezes. Só que alguns homens, os que não gostam de mulher, querem conquistar várias mulheres. Os que gostam de mulher é que conquistam várias vezes a mesma mulher. E isso nos gratifica, nos fortalece e nos dá uma nova dimensão. A dimensão da poesia, do amor e em última instância do impenetrável universo feminino. Mas atenção amigos que gostam de mulher: gostar de mulher e penetrar em seu universo não é torná-las cativas e sim libertá-las, admirá-las em sua insuperável liberdade. Uma das músicas com que mais me identifico é uma em inglês por incrível que pareça, para um nacionalista e anti-imperialista convicto. 'É a Have you really loved a woman? do cantor Bryan Adams. A música foi tema do filme Don Juan de Marco, e em uma tradução livre quer dizer "você já amou realmente uma mulher?". Em toda a música o cantor fala sobre a necessidade de se conhecer os pensamentos femininos, sonhos, dá-la apoio, para amar realmente uma mulher. Essa música é perfeita. Como se vê, gostar de comer mulher é fácil. Agora gostar de mulher é dificílimo. Precisa ser macho de verdade para isso. Quem se habilita?

Quase

Ainda pior que a convicção do não é a incerteza do talvez,
é a desilusão de um quase.
É o quase que me incomoda, que me entristece,
que me mata trazendo tudo que poderia ter sido e não foi.
Quem quase ganhou ainda joga, quem quase passou ainda estuda,
quem quase morreu está vivo, quem quase amou não amou.
Basta pensar nas oportunidades que escaparam pelos dedos,
nas chances que se perdem por medo, nas idéias que nunca sairão
do papel por essa maldita mania de viver no outono.
Pergunto-me, às vezes, o que nos leva a escolher uma vida morna;
ou melhor não me pergunto, contesto.
A resposta eu sei de cor, está estampada na distância
e frieza dos sorrisos, na frouxidão dos abraços,
na indiferença dos "Bom dia", quase que sussurrados.
Sobra covardia e falta coragem até pra ser feliz.
A paixão queima, o amor enlouquece, o desejo trai.
Talvez esses fossem bons motivos para decidir
entre a alegria e a dor, sentir o nada, mas não são.
Se a virtude estivesse mesmo no meio termo,
o mar não teria ondas, os dias seriam nublados
e o arco-íris em tons de cinza.
O nada não ilumina, não inspira, não aflige nem acalma,
apenas amplia o vazio que cada um traz dentro de si.
Não é que fé mova montanhas, nem que todas as estrelas
estejam ao alcance, para as coisas que não podem ser mudadas
resta-nos somente paciência porém,
preferir a derrota prévia à dúvida da vitória
é desperdiçar a oportunidade de merecer.
Pros erros há perdão; pros fracassos, chance;
pros amores impossíveis, tempo.
De nada adianta cercar um coração vazio ou economizar alma.
Um romance cujo fim é instantâneo ou indolor não é romance.
Não deixe que a saudade sufoque, que a rotina acomode,
que o medo impeça de tentar.
Desconfie do destino e acredite em você.
Gaste mais horas realizando que sonhando,
fazendo que planejando,
vivendo que esperando porque,
embora quem quase morre esteja vivo,
quem quase vive já morreu.

Sarah Westphal

Amor

Ela: Você me ama mais do que tudo?
Ele: Amo.
Ela: Paixão, paixão?
Ele: Paixão, paixão mesmo.
Ela: Mais do que tudo no mundo todo?
Ele: No mundo todo e fora dele.
Ela: Não acredito.
Ele: Faz um teste.
Ela: Eu ou fios de ovos.
Ele: Você, fácil.
Ela: Daqueles com calda grossa, que a gente chupa o fio e a calda escorre pelo queixo.
Ele: Prefiro você.
Ela: Futebol.
Ele: Não tem comparação.
Ela: Você esta caminhando, vem uma bola quicando, a garotada grita
"Devolve tio!" e você domina, faz dezessete embaixadas e chuta com perfeição.
Ele: Prefiro você.
Ela: Internacional e Milan em Tóquio pelo campeonato do mundo,
passagem e entrada de graça.
Ele: Você vai junto?
Ela: Não.
Ele: Pela televisão se vê melhor.
Ela: Faz muito calor. Aí chove, aí abre o sol, aí vem uma brisa fresca com
aquele cheiro de terra molhada, aí toca uma musica no rádio e é uma
nova do Paulinho. É Sexta-feira e a televisão anunciou um Hitchcock
sem dublagem para aquela noite... e o Itamar está dando certo.
Ele: Você.
Ela: Voltar a infância só pra poder pisar na lama com o pé descalço e
sentir a lama fazer squish entre os dedos.
Ele: Você, longe.
Ela: A Sharon Stone telefona e diz que é ela ou eu.
Ele: Que dúvida. Você.
Ela: Cheiro de livro novo. Solo de sax alto. Criança distraída. Canetinha
japonesa. Bateria de escola de samba. Lençol recém-lavado. Hora
no dentista cancelada. Filme com escadaria curva. Letra do Aldir
Blanc. Pastel de rodoviária.
Ele: Você, você, você, você, você, você, você, você, você e você,
respectivamente.
Ela: A Sharon Stone telefona novamente e diz que se você se livrar de
mim ela já vem sem calcinha.
Ele: Desligo o telefone.
Ela: Fama e fortuna. A explicação do universo e do mercado de
commodities, com exclusividade. A vida eterna e um cartão de
credito que nunca expira.
Ele: Prefiro você.
Ela: Uma cerveja geladinha. A garrafa chega estalando. No copo, fica com
um quarto de espuma firme. O resto é ela, só ela, dizendo "Vem".
Ele: Hummm...
Ela: Como, hummm? Ela ou eu?
.... Silêncio de 5 segundos ...
Ele: Qual é a marca?
Ela: Seu cretino!

Luis Fernando Verissimo

Reticências

Às vezes eu imagino
que tenho alguém
perto de mim...
Alguém que eu amo
e que me quer também;
que olha nos meus olhos,
que pega no meu rosto,
alguém que sabe o gosto
que o meu coração tem...
Sabe, de vez em quando
a minha imaginação
trabalha tanto,
que chego a ver você!
Chego a sentir sua mão!
Vê?...
Parece que voce está aqui agora,
no entanto...

Mariza Fontes de Almeida

Quero

(O beijo, por Gustav Klimt)


Quero que todos os dias do ano
todos os dias da vida
de meia em meia hora
de 5 em 5 minutos
me digas: Eu te amo.
Ouvindo-te dizer: Eu te amo,
creio, no momento, que sou amado.
No momento anterior
e no seguinte,
como sabê-lo?
Quero que me repitas até a exaustão
que me amas que me amas que me amas.
Do contrário evapora-se a amação
pois ao não dizer: Eu te amo, desmentes,
apagas teu amor por mim.
Exijo de ti o perene comunicado.
Não exijo senão isto,
isto sempre, isto cada vez mais.
Quero ser amado por e em tua palavra
nem sei de outra maneira a não ser esta
de reconhecer o dom amoroso,
a perfeita maneira de saber-se amado:
amor na raiz da palavra
e na sua emissão,
amor saltando da língua nacional,
amor feito som
vibração espacial.
No momento em que não me dizes:
Eu te amo,
inexoravelmente sei
que deixaste de amar-me,
que nunca me amastes antes.
Se não me disseres urgente repetido
Eu te amoamoamoamoamo,
verdade fulminante que acabas de desentranhar,
eu me precipito no caos,
essa coleção de objetos de não-amor.

Carlos Drummond de Andrade

O amor da sua vida

Ninguém ama outra pessoa pelas qualidades que ela tem, caso contrário os honestos,
simpáticos e não-fumantes teriam uma fila de pretendentes batendo a porta.
O amor não é chegado a fazer contas, não obedece à razão.
O verdadeiro amor acontece por empatia, por magnetismo, por conjunção estelar.
Costuma ser despertado mais pelas flechas do cupido que por uma ficha limpa.
Ninguém ama outra pessoa porque ela é educada,
veste-se bem e é fã do Caetano.Isso são só referenciais.
Ama-se pelo cheiro, pelo mistério, pela paz que o outro lhe dá,ou pelo tormento que provoca.
Ama-se pelo tom de voz, pela maneira que os olhos piscam,
pela fragilidade que se revela quando menos se espera.Você ama aquela petulante.
Você escreveu dúzias de cartas que ela não respondeu, você deu flores que ela deixou a seco, você a levou para conhecer a sua mãe e ela foi de blusa transparente.
Você gosta de rock e ela de chorinho, você gosta de praia e ela tem alergia a sol, você abomina o Natal e ela detesta o Ano Novo, nem no ódio vocês combinam.
Então? Então que ela tem um jeito de sorrir que o deixa imobilizado,
o beijo dela é mais viciante do que LSD, você adora brigar com ela e ela adora implicar com você.
Isso tem nome. Você ama aquele cafajeste.
Ele diz que vai e não liga, ele veste o primeiro trapo que encontra
no armário, ele escuta Egberto Gismonti e Sivuca.
Ele não emplaca uma semana nos empregos, está sempre duro, e é meio galinha.
Ele não tem a maior vocação para príncipe encantado, e ainda assim você não consegue despachá-lo.
Quando a mão dele toca na sua nuca, você derrete feito manteiga.
Ele toca gaita de boca, adora animais e escreve poemas.
Por que você ama este cara?
Não pergunte para mim. Você é inteligente. Lê livros, revistas, jornais.
Gosta dos filmes de Woody Allen, dos irmãos Coen e do Robert Altman, mas sabe que uma boa comédia romântica também tem o seu valor.
É bonita. Seu cabelo nasceu para ser sacudido num comercial de xampu e
seu corpo tem todas as curvas no lugar.
Independente, emprego fixo, bom saldo no banco.
Gosta de viajar, de música, tem loucura por computador e seu fettucine ao pesto é imbatível.
Você tem bom humor, não pega no pé de ninguém e adora sexo.
Com um currículo desse, criatura, por que diabo está sem um amor?
Ah, o amor, essa raposa.
Quem dera o amor não fosse um sentimento, mas uma equação matemática:
eu linda + você inteligente = dois apaixonados.
Não funciona assim. Amar não requer conhecimento prévio nem consulta ao SPC.
Ama-se justamente pelo que o Amor tem de indefinível.
Honestos existem aos milhares, generosos tem às pencas, bons motoristas e bons pais de família, tá assim, ó!
Mas ninguém consegue ser do jeito que o amor da sua vida é.

Roberto Freire