sábado, 10 de maio de 2008

Mal Secreto

Se a cólera que espuma, a dor que mora
N’alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse o espírito que chora
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja a ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!

Raimundo Correia

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Assim...

(Melancolia, por Constance Charpentier)

Assim foi nosso amor... um sonho que viveu
de um sonho, e despertou na realidade um dia...
Um pouco de quimera ao léu da fantasia...
Um flor que brotou e num botão morreu...

Embora sendo nosso, este amor foi só meu,
porque o teu, não foi mais que pura hipocrisia,
- no fundo, há muito tempo, a minha alma sentia
este fim que o destino afinal já lhe deu...

Não podes, bem o sei - sendo mulher como és,
saber quanto sofri, vendo esta flor desfeita
e as pétalas no chão, pisadas por teus pés...

Que importa ? Hás de sofrer mais tarde - a vida é assim...
Esse mesmo sorrir que agora te deleita
é o mesmo que depois há de amargar teu fim!...

J. G. de Araujo Jorge

quarta-feira, 30 de abril de 2008

A Dor Maior

Não quis julgar-te fútil nem banal
e chamei-te de criança tão-somente,
- reconheço, no entanto, infelizmente,
que, porque te quis bem, julguei-te mal.

Pensei até, ( e o fiz ingenuamente...)
ter encontrado a companheira ideal...
Quis julgar-te das outras diferente,
e és como as outras todas afinal...

Hoje, uma dor estranha me consome
e um sentimento a que não sei dar nome
faz-me sofrer, se lembro o amor perdido...

A dor maior... A maior dor, no entanto,
vem de pensar de Ter-te amado tanto
sem que ao menos tivesses merecido!...

J. G. de Araujo Jorge

O amor (Coríntios XIII)

(Cupido e Psiquê, por Jacques-Louis David)

Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o címbalo que retine.

E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria.

E ainda que distribuísse todos os meus bens para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria.

O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não se vangloria, não se ensoberbece.

Não se porta inconvenientemente, não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não suspeita mal.

Não se regozija com a injustiça, mas se regozija com a verdade.

Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.

O amor jamais acaba; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá.

Porque, em parte conhecemos, e em parte profetizamos.

Mas, quando vier o que é perfeito, então o que é em parte será aniquilado.

Quando eu era menino, pensava como menino; mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino.

Porque agora vemos como por espelho, em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei plenamente, como também sou plenamente conhecido.

Agora, pois, permanecem a fé, a esperança, o amor, estes três; mas o maior destes é o amor.

---
Dedicado a minha amiga Lígia Costa que sentiu falta desse texto e me pediu para publicá-lo. 8^)
Um beijo pra você Lígia!

terça-feira, 29 de abril de 2008

Benção Irlandesa

Que o caminho seja brando a teus pés,
O vento sopre leve em teus ombros.
Que o sol brilhe cálido sobre tua face,
As chuvas caiam serenas em teus campos.
E até que eu de novo te veja,
que os Deuses te guardem nas palmas de Suas mãos

Que a estrada abra à sua frente,
que o vento sopre levemente em suas costas,
que o sol brilhe morno em e suave em sua face,
que a chuva caia de mansinho em seus campos.
E até que nos encontremos de novo...
Que os Deuses guardem, você na palma das suas mãos.

Que as gotas da chuva molhem suavemente o seu rosto,
que o vento suave refresque seu espírito,
que o sol ilumine seu coração,
que as tarefas do dia não sejam um peso nos seus ombros,
e que Deus envolva você no seu manto de amor.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Soneto do Maior Amor

Maior amor nem mais estranho existe
Que o meu, que não sossega a coisa amada
E quando a sente alegre, fica triste
E se a vê descontente, dá risada.

E que só fica em paz se lhe resiste
O amado coração, e que se agrada
Mais da eterna aventura em que persiste
Que de uma vida mal aventurada.

Louco amor meu, que quando toca, fere
E quando fere vibra, mas prefere
Ferir a fenecer - e vive a esmo

Fiel à sua lei de cada instante
Desassombrado, doido, delirante
Numa paixão de tudo e de si mesmo.

Vinícius de Moraes

Este inferno de amar

(Water edges, por Berthe Morisot)

Este inferno de amar - como eu amo! -
Quem mo pôs aqui n'alma... quem foi?
Esta chama que alenta e consome,
Que é vida - e que a vida destrói -
Como é que se veio a atear,
Quando, ai, quando se há-de ela apagar?

Eu não sei, não me lembra: o passado,
A outra vida que dantes vivi
Era um sonho talvez... - foi um sonho -
Em paz tão serena a dormi!
Oh! que doce era aquele sonhar...
Quem me veio, ai de mim, despertar?

Só me lembra que um dia formoso
Eu passei... dava o sol tanta luz!
E os meus olhos, que vagos giravam,
Em seus olhos ardentes os pus.
Que fez ela? eu que fiz? - Não o sei;
Mas nessa hora a viver comecei...

Almeida Garrett

sábado, 26 de abril de 2008

Às Vezes

Às vezes tenho idéias felizes,
Idéias subitamente felizes, em idéias
E nas palavras em que naturalmente se despegam...
Depois de escrever, leio...

Por que escrevi isto?
Onde fui buscar isto?
De onde me veio isto?
Isto é melhor do que eu...

Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?...

Álvaro de Campos


Poesia indicada pela Carlinha do NaCarla

Esse blog não me sai da cabeça

Estou quebrando a rotina do "Alguns Textos..." para agradecer ao Whebson do blog Cantim da Notícia por ter nos dado o selo "Esse blog não me sai da cabeça". E agradecer em especial às palavras dele sobre o blog. Muito obrigado Whebson!

Para receber o selo indico os blogs:
Música & Poesia
Keidy Lee Jones e
A Menina Lady

E agora voltemos à nossa programação normal.

terça-feira, 22 de abril de 2008

O amor, quando se revela...

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente
Cala: parece esquecer

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pra saber que a estão a amar!
Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...

Fernando Pessoa

No corpo

De que vale tentar reconstruir com palavras
o que o verão levou
entre nuvens e risos
junto com o jornal velho pelos ares?

O sonho na boca, o incêndio na cama.
o apelo na noite
agora são apenas esta
contração (este clarão)
de maxilar dentro do rosto.

A poesia é o presente.

Ferreira Gullar

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha

A World of Their Own
(A World of Their Own, por Sir Lawrence Alma-Tadema)

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus barcos...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...

Florbela Espanca

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Bem no fundo

No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja que olhas pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas

Paulo Leminski

domingo, 13 de abril de 2008

Poesia Matemática

Às folhas tantas
Do livro matemático
Um Quociente apaixonou-se
Um dia
Doidamente
Por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
E viu-a, do Ápice à Base,
Uma Figura Ímpar;
Olhos rombóides, boca trapezóide,
Corpo otogonal, seios esferóides.
Fez da sua
Uma vida
Paralela a dela
Até que se encontraram
No Infinito.
"Quem és tu?" indagou ele
Com ânsia radical.
"Sou a soma dos quadrados dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa."
E de falarem descobriram que eram
- O que, em aritmética, corresponde
A almas irmãs -
Primos-entre-si.
E assim se amaram
Ao quadrado da velocidade da luz
Numa sexta potenciação
Traçando
Ao sabor do momento
E da paixão
Retas, curvas, círculos e linhas sinoidais.
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclideanas
E os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E, enfim, resolveram se casar
Constituir um lar.
Mais que um lar,
Uma perpendicular.

Convidaram para padrinhos
O Poliedro e a Bissetriz.
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
Sonhando com uma felicidade
Integral
E diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
Muito engraçadinhos
E foram felizes
Até aquele dia
Em que tudo, afinal,
Vira monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
Freqüentador de Círculos Concêntricos.
Viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
Uma Grandeza Absoluta,
E reduziu-a a um Denominador Comum.
Ele, Quociente, percebeu
Que com ela não formava mais Um Todo,
Uma Unidade. Era o Triângulo,
Tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era a fração
Mais ordinária.
Mas foi então que o Einstein descobriu a Relatividade
E tudo que era expúrio passou a ser
Moralidade
Como, aliás, em qualquer
Sociedade.

Millôr Fernandes

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Um céu e nada mais

Um céu e nada mais - que só um temos,
como neste sistema: só um sol.
Mas luzes a fingir, dependuradas
em abóbada azul - como de tecto.
E o seu número tal, que deslumbrados
eram os teus olhos, se tas mostrasse,
amor, tão de ribalta azul, como de
circo, e dança então comigo no
trapézio, poema em alto risco,
e um levíssimo toque de mistério.
Pega nas lantejoulas a fingir
de sóis mal descobertos e lança
agora a âncora maior sobre o meu
coração. Que não te assuste o som
desse trovão que ainda agora ouviste,
era de deus a sua voz, ou mito,
era de um anjo por demais caído.
Mas, de verdade: natural fenómeno
a invadir-te as veias e o cérebro,
tão frágil como álcool, tão de
potente e liso como álcool
implodindo do céu e das estrelas,
imensas a fingir e penduradas
sobre abóbada azul. Se te mostrasse,
amor, a cor do pesadelo que por
aqui passou agora mesmo, um céu
e nada mais - que nada temos,
que não seja esta angústia de
mortais (e a maldição da rima,
já agora, a invadir poema em alto
risco), e a dança no trapézio
proibido, sem rede, deus, ou lei,
nem música de dança, nem sequer
inocência de criança, amor,
nem inocência. Um céu e nada mais.

Ana Luísa Amaral

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Amor

(Farbstudie Quadrate, por Kandinsky)
Amemos! Quero de amor
Viver no teu coração!
Sofrer e amar essa dor
Que desmaia de paixão!
Na tu'alma, em teus encantos
E na tua palidez
E nos teus ardentes prantos
Suspirar de languidez!
Quero em teus lábio beber
Os teus amores do céu,
Quero em teu seio morrer
No enlevo do seio teu!
Quero viver d'esperança,
Quero tremer e sentir!
Na tua cheirosa trança
Quero sonhar e dormir!
Vem, anjo, minha donzela,
Minha'alma, meu coração!
Que noite, que noite bela!
Como é doce a viração!
E entre os suspiros do vento
Da noite ao mole frescor,
Quero viver um momento,
Morrer contigo de amor!

Álvares de Azevedo

Mude

(Composition, por Jackson Polock)
Mas comece devagar,
porque a direção é mais importante
que a velocidade.
Sente-se em outra cadeira,
no outro lado da mesa.
Mais tarde, mude de mesa.
Quando sair,
procure andar pelo outro lado da rua.
Depois, mude de caminho,
ande por outras ruas,
calmamente,
observando com atenção
os lugares por onde
você passa.
Tome outros ônibus.
Mude por uns tempos o estilo das roupas.
Dê os teus sapatos velhos.
Procure andar descalço alguns dias.
Tire uma tarde inteira
para passear livremente na praia,
ou no parque,
e ouvir o canto dos passarinhos.
Veja o mundo de outras perspectivas.
Abra e feche as gavetas
e portas com a mão esquerda.
Durma no outro lado da cama.
Depois, procure dormir em outras camas.
Assista a outros programas de tv,
compre outros jornais,
leia outros livros,
Viva outros romances!
Não faça do hábito um estilo de vida.
Ame a novidade.
Durma mais tarde.
Durma mais cedo.
Aprenda uma palavra nova por dia
numa outra língua.
Corrija a postura.
Coma um pouco menos,
escolha comidas diferentes,
novos temperos, novas cores,
novas delícias.
Tente o novo todo dia.
o novo lado,
o novo método,
o novo sabor,
o novo jeito,
o novo prazer,
o novo amor.
a nova vida.
Tente.
Busque novos amigos.
Tente novos amores.
Faça novas relações.
Almoce em outros locais,
vá a outros restaurantes,
tome outro tipo de bebida
compre pão em outra padaria.
Almoce mais cedo,
jante mais tarde ou vice-versa.
Escolha outro mercado,
outra marca de sabonete,
outro creme dental.
Tome banho em novos horários.
Use canetas de outras cores.
Vá passear em outros lugares.
Ame muito,
cada vez mais,
de modos diferentes.
Troque de bolsa,
de carteira,
de malas.
Troque de carro.
Compre novos óculos,
escreva outras poesias.
Jogue os velhos relógios,
quebre delicadamente
esses horrorosos despertadores.
Abra conta em outro banco.
Vá a outros cinemas,
outros cabeleireiros,
outros teatros,
visite novos museus.
Mude.
Lembre-se de que a Vida é uma só.
Arrume um outro emprego,
uma nova ocupação,
um trabalho mais light,
mais prazeroso,
mais digno,
mais humano.

Se você não encontrar razões para ser livre,
invente-as.

Seja criativo.
E aproveite para fazer uma viagem despretensiosa,
longa, se possível sem destino.
Experimente coisas novas.
Troque novamente.
Mude, de novo.
Experimente outra vez.
Você certamente conhecerá coisas melhores
e coisas piores,
mas não é isso o que importa.
O mais importante é a mudança,
o movimento,
o dinamismo,
a energia.
Só o que está morto não muda! "

Edson Marques

quinta-feira, 3 de abril de 2008

O nosso mundo

Eu bebo a Vida, a Vida, a longos tragos
Como um divino vinho de Falerno
Poisando em ti o meu olhar eterno
Como poisam as folhas sobre os lagos...

Os meus sonhos agora são mais vagos
O teu olhar em mim, hoje é mais terno...
E a Vida já não é o rubro inferno
Todo fantasmas tristes e presságios!

A Vida, meu amor, quero vivê-la!
Na mesma taça erguida em tuas mãos,
Bocas unidas hemos de bebê-la!

Que importa o mundo e as ilusões defuntas?...
Que importa o mundo e seus orgulhos vãos?...
O mundo, Amor!...As nossas bocas juntas!...

Florbela Espanca

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Iluminado

Ando em busca
do ponto de equilíbrio
entre o aqui
e o agora

Perco os limites
do tempo
sigo lenta.

Pensando como quem dorme
falando
como quem sonha
amando
como quem pode.

Vejo a vida
de olhos claros
translúcidos
coloridos
como vinho
iluminado.

Anna Maria Feitosa

Lágrimas ocultas

Se me ponho a cismar em outras eras
Em que rí e cantei, em que era querida,
Parece-me que foi outras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...
E a minha triste boca dolorida
Que dantes tinha o rir das primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!
E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...
E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!

Florbela Espanca

quarta-feira, 26 de março de 2008

Seja eu de quem for

(Blossoming, por Brian Fahlstrom)

Serei eu a chama que arde em ti ou por acaso já se apagou o fogo que deixei de ver nos teus olhos.

Serás tu a minha alma gémea ou incendiou-se o rastilho de paixão que me cega.

Louca esta visão que me surge no horizonte: o sol que se põe, a noite que desliza por entre nós, o cheiro do mar, a flor que nos faz falta, o perfume que nos une.

Ando à procura de um ideal para que amanhã seja um ideólogo, um fantasma ou um psicólogo, alguém por quem possam chamar. Por isso quero ser alguém, quero ser de alguém e, sem saber bem porquê, entrego-me sem ver a quem, pois é a forma mais fácil de fugir.

Preencho a espaços aquilo que me falta entender. Em cada passo em falso que dou descubro algo mais e encho a minha já vasta colecção de frustrações. Entrego-me a quem quer que seja mas sem nunca me deixar possuir.

Aperta-me algo por dentro, foi mais um pedaço que morreu. Volta de novo o vazio que me pinta por fora, levanta-se o muro que chega a ser ridículo. Cubro-me de fantasias, crio mitos e personagens, distribuo papeis por aqueles com que me deparo, elaboro maquiavélicos obstáculos e sento-me à espera.

Espero que peguem em mim, que mandem o muro abaixo, que me prendam. Espero em vão. Troco as voltas à vida, construo um labirinto à minha volta e perco-me. Devolvo a paz ao mundo nas horas em que me deixo dormir para, mais tarde, voltar ainda mais insaciável.

Fecho os olhos, continuo a fugir, tropeço em mais alguém que ficou por amar, mais um erro de percurso. Mas continuo nesta minha entrega, a quem quer que seja.

Continuo a fingir para a vida seja eu de quem for. Continuo a viver do engano e mantenho-me fiel a esta espécie de infidelidade da qual ninguém está a salvo. Este é o meu furacão, o meu tsunami que arrasta almas, corações e deixa um rasto terrível de desilusões.

Carlos Miguel Leite

quarta-feira, 19 de março de 2008

Deste modo ou daquele modo

Deste modo ou daquele modo,
Conforme calha ou não calha,
Podendo às vezes dizer o que penso,
E outras vezes dizendo-o mal e com misturas,
Vou escrevendo os meus versos sem querer,
Como se escrever
não fosse uma coisa feita de gestos,
Como se escrever
fosse uma coisa que me acontecesse
Como dar-me o sol de fora.

Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras à idéia
E não precisar dum corredor
Do pensamento para as palavras.

Nem sempre
consigo sentir o que sei que devo sentir.
O meu pensamento
só muito devagar atravessa o rio a nado
Porque lhe pesa o fato
que os homens o fizeram usar.

Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me
do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta
com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu,
Um animal humano que a Natureza produziu.

E assim escrevo, querendo sentir a Natureza,
nem sequer como um homem,
Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.
E assim escrevo, ora bem, ora mal,
Ora acertando com o que quero dizer,
ora errando,
Caindo aqui, levantando acolá,
Mas indo sempre no meu caminho
como um cego teimoso.

Ainda assim, sou alguém.
Sou o descobridor da Natureza.
Sou o argonauta das sensações verdadeiras.
Trago ao Universo um novo Universo
Porque trago ao Universo ele próprio.

Isto sinto e isto escrevo
Perfeitamente sabedor e sem que não veja
Que são cinco horas do amanhecer
E que o sol, que ainda não mostrou a cabeça
Por cima do muro do horizonte,
Ainda assim já se lhe vêem as pontas dos dedos
Agarrando o cimo do muro
Do horizonte cheio de montes baixos.

Alberto Caeiro

terça-feira, 18 de março de 2008

Se as minhas mãos pudessem desfolhar

(Full moon, por Ron Croci)

Eu pronuncio teu nome
nas noites escuras,
quando vêm os astros beber na lua
e dormem
nas ramagens das frondes ocultas.
E eu me sinto oco de paixão
e de música.
Louco relógio
que canta mortas horas antigas.
Eu pronuncio teu nome,
nesta noite escura,
e teu nome me soa
mais distante que nunca.
Mais distante que todas as estrelas
e mais dolente que a mansa chuva.
Amar-te-ei
como então alguma vez?
Que culpa tem meu coração?
Se a névoa se esfuma,
que outra paixão me espera?
Será tranqüila e pura?
Se minhas mãos
pudessem desfolhar a lua!

Garcia Lorca

quinta-feira, 13 de março de 2008

Além do amor

Maravilhoso seria possuí-la,
mostrar-me todo e real a ela,
abrir à volúpia uma janela,...
o portão, a porta, a casa inteira,
até que se fizesse verdadeira,
alojando-se confortável ao coração.

E por ser assim profunda, então,
toda palavra se tornando obsoleta,
a felicidade fazendo-se completa;
mergulhados os corpos no silêncio,
faríamos amor, como hoje penso:
a paixão elevada, além da poesia

A prática conduzir-nos-ia ao cansaço
e este, ao mais perfeito deleite:
vê-la dormir, tal anjo ao abandono;
instante em que,... atrevido,
eu pararia o universo,
só pra evitar que alguma luz distante
pudesse, talvez, incomodar seu sono.

André L. Soares

quarta-feira, 12 de março de 2008

Quem morre?

Morre lentamente
Quem não viaja,
Quem não lê,
Quem não ouve música,
Quem não encontra graça em si mesmo

Morre lentamente
Quem destrói seu amor próprio,
Quem não se deixa ajudar.

Morre lentamente
Quem se transforma em escravo do hábito
Repetindo todos os dias os mesmos trajeto,
Quem não muda de marca,
Não se arrisca a vestir uma nova cor ou
Não conversa com quem não conhece.

Morre lentamente
Quem evita uma paixão e seu redemoinho de emoções, Justamente as que resgatam o brilho dos
Olhos e os corações aos tropeços.

Morre lentamente
Quem não vira a mesa quando está infeliz
Com o seu trabalho, ou amor,
Quem não arrisca o certo pelo incerto
Para ir atrás de um sonho,
Quem não se permite, pelo menos uma vez na vida, Fugir dos conselhos sensatos...

Viva hoje !
Arrisque hoje !
Faça hoje !
Não se deixe morrer lentamente !

NÃO SE ESQUEÇA DE SER FELIZ

Martha Medeiros

sexta-feira, 7 de março de 2008

Um bonde chamado seu beijo

Evening mood, por William Bouguereau
(Evening mood, por Bouguereau)

Quem encobrirá meu sono?
Beijará quem minhas costas no cotidiano?
Quem, no meio do frio, me cobrirá com lindas orelhas
e me dirá palavras indecentes nos ouvidos?
Quem, atrevido, me acordará com o ponteiro em riste
como um pássaro que não quer tudo
apenas o céu, a gaiola, o alpiste?
Quem que, quando eu dormisse, por mim zelasse
e eu, quando acordasse, lhe fizesse iogurtes brejeiros
massagens nos pés, cumplicidades de enlace?
Quem me agarrará por trás quando eu sair cheirosa do banho
e terá orgulho de eu ser guerreira e perfumada ao mesmo tempo?
Quem em bom senso dirá que muito me assanho
quem orientará a guerrilha diária a que me proponho
quem será inteligente e gostoso a meu lado como está no meu sonho?
Quem, a quem me disponho a cozinhar e fazer versos
quem racional e perverso cochichará nos tímpanos da minha alma
a doce ordem, a venal palavra: Calma?
Quem com sua alma me mostrará um mar vertical?
Quem, meu igual, me apontará andores reais, sem excesso de glacê no bolo
Com determinação de touro e a nobreza de poder ser banal?
Quem, coisa e tal, me beijará a boca e me enfiará as mãos
por debaixo da barra do segredo do vestido
e um dia passeará comigo no segredo contido na Barra do Jucu?
Quem, senão tu que eu elejo, eu planejo, pode habitar o lugar
a suíte que há tanto tenho reservado?
Quem, encomendado, pode me manter na confiança dos edredons
enquanto não chega?
Quem, com certeza, me visitará num outubourbon no gume da lira
de eu ser égua, cadela, mulher e sua?
Quem sobre mim sua, pinga, chove?
Quem que com lucidez resolve o abismo simples de prever o risco de sonhar
pra nele mesmo cair, rir
e se embolar?
Quem me dará a idéia de conceber a saudade no sentido tático
quem, não estático, de longe me fará cometer poemas de meia-noite?
Quem, sem favor, me estende o braço com rosas na mão
com explicação pro meu calor?
Quem, senão meu doido bondinho
meus olhos acesinhos, meu comedor...
Meu triz, meu risco
meu cristo redentor?

Elisa Lucinda

Um sol diferente

Que apesar de todas as dificuldades,
apesar de algumas tristezas que insistem,
mesmo com essa montanha erguida,
o sol possa ser seu presente mais doce.

Desejo ao seu coração o querer que ele quer.
Que dentre as palavras que ele sussurra em seu peito
sejam ouvidas aquelas que cantam a liberdade.

Que você esteja atento para o sopro da sua vontade e
jamais desista dos seus passos em direção à verdade.
Desejo que a sua percepção acorde mais plena
no calor de um sol novo e renovador.
Que ele encoraje as atitudes que estão querendo respirar.
Aquelas que sempre são substituídas.
Aquelas que não se arrojam por ter os pesos
de conceitos por demais antigos.

Desejo que você aceite seu tempo, seja ele qual for.
Que sinta serenidade na espera necessária para que a
semente plantada brote no tempo certo.
Desejo que sua flor seja inteira,
e mesmo que inicialmente pequena e frágil,
ela lhe traga as luzes de uma estrada azul.
Que a sua sabedoria esteja desperta,
aguardando com tranqüilidade o desabrochar da sua flor.

Desejo a você um sol diferente.
Espalhando seu sorriso pela densidade das nuvens,
simplificando o aspecto complicado de alguns momentos e
mostrando-lhe a fonte essencial para sua sede.

Desejo que, a cada instante, você desnude mais seu coração e deixe que nele vibre em tom maior o amor.

Alberto Gomes Ferreira

---

Contribuição da Carlinha do NaCarla. Valeu Carlinha!

sábado, 1 de março de 2008

Despedida

Existem duas dores de amor:
A primeira é quando a relação termina e a gente,
seguindo amando, tem que se acostumar com a ausência do outro,
com a sensação de perda, de rejeição e com a falta de perspectiva,
já que ainda estamos tão embrulhados na dor
que não conseguimos ver luz no fim do túnel.

A segunda dor é quando começamos a vislumbrar a luz no fim do túnel.

A mais dilacerante é a dor física da falta de beijos e abraços,
a dor de virar desimportante para o ser amado.
Mas, quando esta dor passa, começamos um outro ritual de despedida:
a dor de abandonar o amor que sentíamos.
A dor de esvaziar o coração, de remover a saudade, de ficar livre,
sem sentimento especial por aquela pessoa. Dói também…

Na verdade, ficamos apegados ao amor tanto quanto à pessoa que o gerou.
Muitas pessoas reclamam por não conseguir se desprender de alguém.
É que, sem se darem conta, não querem se desprender.
Aquele amor, mesmo não retribuído, tornou-se um souvenir,
lembrança de uma época bonita que foi vivida…
Passou a ser um bem de valor inestimável, é uma sensação à qual
a gente se apega. Faz parte de nós.
Queremos, logicamente, voltar a ser alegres e disponíveis,
mas para isso é preciso abrir mão de algo que nos foi caro por muito tempo,
que de certa maneira entranhou-se na gente,
e que só com muito esforço é possível alforriar.

É uma dor mais amena, quase imperceptível.
Talvez, por isso, costuma durar mais do que a ‘dor-de-cotovelo’
propriamente dita. É uma dor que nos confunde.
Parece ser aquela mesma dor primeira, mas já é outra. A pessoa que nos
deixou já não nos interessa mais, mas interessa o amor que sentíamos por
ela, aquele amor que nos justificava como seres humanos,
que nos colocava dentro das estatísticas: “Eu amo, logo existo”.

Despedir-se de um amor é despedir-se de si mesmo.
É o arremate de uma história que terminou,
externamente, sem nossa concordância,
mas que precisa também sair de dentro da gente…
E só então a gente poderá amar, de novo.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

O Vento na Ilha

delacroix29
(Woman with a Parrot, por Èugene Delacroix)

Vento é um cavalo:
ouve como ele corre
pelo mar, pelo céu.
Quer me levar: escuta
como ele corre o mundo
para levar-me longe.
Esconde-me em teus braços
por esta noite erma,
enquanto a chuva rompe
contra o mar e a terra
sua boca inumerável.
Escuta como o vento
me chama galopando
para levar-me longe.
Como tua fronte na minha,
tua boca em minha boca,
atados nossos corpos
ao amor que nos queima,
deixa que o vento passe
sem que possa levar-me.
Deixa que o vento corra
coroado de espuma,
que me chame e me busque
galopando na sombra,
enquanto eu, protegido
sob teus grandes olhos,
por esta noite só
descansarei, meu amor.

Pablo Neruda

Poemeto Erótico

Teu corpo claro e perfeito,
- Teu corpo de maravilha,
Quero possuí-lo no leito
Estreito da redondilha...
Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa...flor de laranjeira...
Teu corpo, branco e macio,
É como um véu de noivado...
Teu corpo é pomo doirado...
Rosal queimado do estio,
Desfalecido em perfume...
Teu corpo é a brasa do lume...
Teu corpo é chama e flameja
Como à tarde os horizontes
É puro como nas fontes
A água clara que serpeja,
Que em cantigas se derrama...
Volúpia de água e da chama...
A todo momento o vejo...
Teu corpo... a única ilha
No oceano do meu desejo...
Teu corpo é tudo o que brilha,
Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa, flor de laranjeira...

Manoel Bandeira

Timidez

Paul Ranson - Apple Tree with Red Fruit
(Apple Tree with Red Fruit, por Paul Ranson)

Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...
- mas só esse eu não farei.
Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes...
- palavra que não direi.
Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,
- que amargamente inventei.
E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando...
e um dia me acabarei.

Cecília Meireles

Ilusões de Vida

Quem passou pela vida em branca nuvem
E em plácido repouso adormeceu,
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e não sofreu,
Foi espectro de homem - não foi homem,
Só passou pela vida - não viveu.

Francisco Otaviano

Canção Para Uma Valsa Lenta

Minha vida não foi um romance...
Nunca tive até hoje um segredo.
Se me amas, não digas, que morro
De surpresa… de encanto… de medo...
Minha vida não foi um romance...
Minha vida passou por passar.
Se não amas, não finjas, que vivo
Esperando um amor para amar.
Minha vida não foi um romance...
Pobre vida… passou sem enredo...
Glória a ti que me enches a vida
De surpresa, de encanto, de medo!
Minha vida não foi um romance...
Ai de mim… Já se ia acabar!
Pobre vida que toda depende
De um sorriso... de um gesto... um olhar...

Mário Quintana

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Fragmentos disso que chamamos de "minha vida"

Há alguns anos. Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de "minha vida". Outros fragmentos, daquela "outra vida". De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.

Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.

Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector "Tentação" na cabeça estonteada de encanto: "Mas ambos estavam comprometidos.

Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.

Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania.

Caio Fernando Abreu